Um pouco d'o Qorpo espalhado na rede.


Qorpo-Santo
Qorpo-Santo
Qorpo-Santo faz parte do cânone da dramaturgia gaúcha, mas pouco se conhece de sua obra. Autor do século 19, propôs reforma ortográfica na língua portuguesa e escreveu 17 comédias, agora reeditadas.
O melhor personagem do gaúcho José Joaquim de Campos Leão (1829-1883) é ele próprio, auto-apelidado Qorpo-Santo. Escolheu o nome aos 34 anos, quando acreditava imbuído de missão divina. A justificativa (Corpo-Santo, mais tarde transformado em Qorpo-Santo) era viver afastado do mundo das mulheres. Se o corpo se pretendia santo, o mesmo não se pode dizer dos textos — e alguns revelam a incapacidade de conciliar tais preceitos aos desejos carnais.
As 17 comédias percorrem universo de erotismo e sensualidade, com histórias às vezes escatológicas, outras que mexem com tabus da época. Foram escritas em cinco meses, entre janeiro e junho de 1866, passaram um século no anonimato e agora estão de volta às livrarias no volume Teatro Completo — Qorpo-Santo, com introdução do professor Eudinyr Fraga, morto há menos de um mês. Fraga pertencia à Escola de Comunicação e Artes (Eca), da Universidade de São Paulo, e era especialista na obra de Campos Leão. Escreveu Qorpo-Santo: Surrealismo ou Absurdo (1988), que questiona a tese de que o autor é precursor do teatro do absurdo.
Segundo o professor, as peças estão mais próximas do surrealismo de André Breton, autor do Manifesto Surrealista, do que do absurdo de Eugène Ionesco. Um dos argumentos é a presença das divagações dos chamados ‘‘fluxos de consciência’’, método que aparece no surrealismo do início do século 20 como ‘‘automatismo psíquico puro’’. A enxurrada de palavras aparece em diferentes textos, entre os quais As Relações Naturais. Mas também há elementos do absurdo. ‘‘Ele criou comédias totalmente nonsense em pleno século 19. Tem esse mérito e um valor artístico inegável’’, afirma a pesquisadora Denise Espírito Santo, organizadora do Poesia — Qorpo-Santo (1999).

Herança cômica

Qorpo-Santo é uma espécie de Arthur Bispo do Rosário do teatro. Tido por louco quando vivo, acabou internado em sanatório. Depois de morto (por tuberculose, aos 53 anos), caiu no esquecimento até ser descoberto nos anos 20 por intelectuais gaúchos. Suas peças, escritas com a rapidez que o levaram à internação (o diagnóstico dizia ‘‘exaltação cerebral’’, marcado pela mania de escrever), levaram exatos cem anos para chegarem aos palcos. As Relações Naturais, Mateus e Mateusa e Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte foram montadas, pela primeira vez, em 1966 na capital gaúcha.
Três anos mais tarde, foi lançada a coletânea das peças por iniciativa de Guilhermino César. Desde a década de 80 sua vida e obra têm inspirado livros, teses e discussões. ‘‘Atualmente, procura-se disfarçar a superficialidade dos seus enredos com algumas tintas de protesto e denúncia’’, afirma o professor Fraga no ensaio Um Corpo que se Queria Santo, introdução ao Teatro Completo. ‘‘Mas, na essência, lá está todo o arsenal cômico vindo diretamente de Martins Pena: quiproquós, esconderijos dentro dos armários, personagens caricaturais, os mesmos velhos preconceitos disfarçados com a máscara da liberalidade.’’
Os textos têm tantos personagens quanto possível diante da crença do autor na migração das almas. A Impossibilidade da Santificação ou a Santificação Transformada, por exemplo, traz 31 deles. Alguns personagens viram outros durante o enredo. ‘‘Alguns personagens são pessoas da sociedade carioca que ele queria atacar’’, conta Denise. Curioso são os nomes: Rubincundo, Revocata, Helbaquínia, Ridinguínio, Ostralâmio, Lamúria, Rocalipsa, Esterquilínea, Eleutério, Régulo, Catinga, Esquisito, Córneo, Ferrabrás, Simplício e por aí segue. A edição mantém os nomes originais, mas atualiza a grafia das palavras para o português usual, em vez de manter a proposta do autor. Muda inclusive a escrita dos títulos: Relasões Naturaes, por exemplo, vira Relações Naturais.
Campos Leão pretendia reformar a língua portuguesa suprimindo letras inúteis como ‘‘u’’ depois do ‘‘q’’ (daí o Qorpo-Santo) e lançou a sua Ensiqlopédia com tipologia própria. Idéia que fazia certo sentido, tanto que algumas de suas propostas foram mais tarde incorporadas ao idioma, como a eliminação do ‘‘ph’’ de pharmacia e o ‘‘h’’ quando não soa, como em deshonesto e deshumano. Para sexo, no entanto, propunha a grafia seqso. Achava que assim atenderia melhor à alfabetização, baseado em sua experiência como professor. ‘‘Quando ele percebeu que não havia chance de suas peças serem lidas, virou tipógrafo e editou a Ensiqlopédia em casa’’, explica Denise.
A Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade possui nove volumes. Cada um deles é dedicado a um gênero — as comédias estão no quarto e as poesias, no primeiro. Há três na biblioteca da família Assis Brasil, três com o colecionador Julio Petersen, ambos de Porto Alegre, e os outros três estão desaparecidos. Há somente um exemplar de cada. Reeditada, a obra teatral funciona como pretexto para enveredar pelo universo de uma das figuras mais intrigantes da dramaturgia brasileira. O melhor de tudo parece mesmo o autor, inventor de si mesmo e da proposta que, como lembra Fraga, a Emília de Monteiro Lobato apreciaria conhecer.
Fonte: www2.correioweb.com.br

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