Amanhã sou outro, hoje sou um

Luma Pereira

Escritor e dramaturgo brasileiro do século XIX, José Joaquim de Campos Leão foi uma figura controversa em sua época. Louco ou gênio? – não há resposta para esta questão, uma vez que é mais justo e coerente defini-lo como alguém que apenas escrevia de maneira diferente dos padrões de literatura e dramaturgia do período em que viveu. “Era conhecido como uma figura excêntrica do Rio Grande do Sul, de repercussão regional”, afirma Elizabeth Azevedo, professora da ECA/USP. “Creio que Campos Leão deva ser lido não como um gênio ou um louco, mas como um escritor expressivo de sua época”, conta Maria Clara Gonçalves, graduada em Letras pela UNESP, atriz e pesquisadora da obra do escritor.

Nascido em 1829 na Vila do Triunfo, província do Rio Grande do Sul, foi comerciário, professor público, diretor de colégio, subdelegado de polícia e vereador da Câmara Municipal de Alegrete. “A atividade intelectual e artística desenvolveu-se somente após o aparecimento de certas perturbações, em 1863”, conta Gonçalves. Já em 1860, inventara para si o pseudônimo de Qorpo-Santo, como até hoje é conhecido. “Com a transfiguração do pacato José Joaquim de Campos Leão no estranho visionário autonomeado Qorpo-Santo, nasce um dos autores mais singulares do seu tempo”, afirma a pesquisadora. “O professor se converteu em uma figura extravagante, cheia de manias e com ideias estéticas pouco convencionais para a sociedade do século XIX”, completa.

No livro Qorpo-Santo: Inovação e Conservação, o estudioso Marco Antonio Arantes explica o motivo de o autor ter incorporado outro nome. Campos Leão acreditava na transmigração de almas – o espírito pode ir para outros corpos, e este pode receber a alma de outras pessoas. “Assim, supunha que seu corpo era habitado pela alma de um frade chamado Corpo Santo, que teria peregrinado no Rio Grande do Sul em data desconhecida”, explica a pesquisadora. Mais tarde, modificou a grafia do nome, substituindo o “c” de “Corpo” pelo “q”, e adicionando o hífen: Qorpo-Santo. Segundo Azevedo, existe outra explicação: “O pseudônimo foi adquirido depois de um período em que ele ficou ‘afastado de mulheres’ e, portanto, purificado”.

“Qorpo-Santo foi um grande reformador. Tinha propostas para diversos assuntos e problemas da vida nacional”, comenta a professora. “O escritor era inconformado com o quadro social da época: política, sociedade, moral, cultura, religião”, afirma Gonçalves. No livro Ensiqlopèdia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade, editado em 1877, Campos Leão versa sobre esses assuntos, propondo as mudanças que considerava necessárias. “Esta obra revelou um autor completamente original, que antecipou, mesmo que não programaticamente, procedimentos formais da poesia e do teatro do século XX, além de reunir crônica, biografia e prosa”, explica a pesquisadora.

Dentre os postulados, estava também a reforma ortográfica que o autor pretendia realizar. “Segundo ele, alguns fonemas eram usados equivocadamente e, por meio de seu sistema, a escrita se tornaria mais coesa e adequada”, conta a pesquisadora. “Há nisso uma busca de racionalidade que ele não via na ortografia da época”, completa Azevedo. Em 1866, escreve as obras de dramaturgia, peças de teatro como As relações naturais, Hoje sou um e amanhã outro e Duas páginas em branco. “É como se esse teatro fosse visto e apresentado por ele como diante de um espelho distorcido”, define a professora. “Os escritos são produtos de uma visão de mundo particular que, complexamente, articula postulados filosóficos, filológicos, teológicos e estéticos, de acordo com a perspectiva de um intelecto ex-cêntrico”, comenta Gonçalves.

Na tentativa de definir o estilo de escrita e o teatro de Campos Leão, os estudiosos perceberam que a obra não se classificava em nenhum período literário específico do século XIX. “Então, Qorpo-Santo foi relacionado pela crítica a inúmeros movimentos e fenômenos artísticos diferentes – modernismo, surrealismo, absurdo”, explica a pesquisadora. Gonçalves conta que a produção do autor é tão singular, que se diferencia de todo tipo de literatura realizada no Brasil naquela época, aproximando-se das estéticas surgidas apenas no século XX. “Qorpo-Santo foi um fenômeno literário, no sentido de que é muito difícil enquadrá-lo na história convencional da literatura brasileira”, complementa Azevedo.
Qorpo-Santo

Ele não se encaixava em nenhuma classificação, pois, segundo Gonçalves, inspirava-se nessas fontes de gêneros para criar um estilo próprio que fosse singular. “É na forma como ele utiliza tais elementos que reside o diferencial”, esclarece a pesquisadora. A principal temática que ele desenvolveu nos escritos foi a da comédia. “Um vasto repertório de elementos vinculados ao riso encontra terreno no teatro de Qorpo-Santo e confere-lhe identidade”, comenta Gonçalves. Neste contexto, Campos Leão se inspira em um estilo nonsense, na caricatura, no exagero e no estranhamento – tudo para incluir o humor na produção das obras.

“O nonsense deu margem para que alguns estudiosos interpretassem sua obra sob o signo do surrealismo, e outros do teatro do absurdo”, esclarece a pesquisadora. Isso porque o nonsense é um recurso que compõe a tradição do cômico. “Qorpo-Santo vale-se dele para retratar a sociedade de seu tempo como um ‘mundo às avessas’, o que provoca tanto o riso fácil, quanto promove a crítica social através do estranhamento”, explica Gonçalves. “Nos anos de 1920, ele chegou a ser considerado até mesmo um autor futurista”, recorda Azevedo. A “anarquia” estrutural das obras de Campos Leão fizeram, também, com que alguns críticos classificassem os escritos como demonstrações do fluxo de consciência e/ou do automatismo psíquico.

“O tema da sexualidade, dos vícios, da amoralidade, da desordem familiar e das instituições sociais surge com frequência em sua obra”, afirma a pesquisadora. Esses assuntos são escolhidos pelo autor, e abordados com o objetivo de combater a desestabilização moral que ele via na sociedade. Além disso, Qorpo-Santo incluía elementos autobiográficos nas produções. Não é raro encontrar “personagens que se mostram como gênios incompreendidos em conflito com a sociedade”, explica Gonçalves. “Embates, conflitos, cisões e dualidades são chaves de leitura eficientes para a obra de Qorpo-Santo”, completa a pesquisadora. “A temática recorrente é a tensão entre as normas sociais e a libido, o confronto entre gêneros e o desacerto das instituições”, afirma Azevedo.

“O desdobramento dentro desse universo dramático transforma-se em algo tão natural que, em alguns momentos, não conseguimos separar perfeitamente o sonho do real, o desejo da razão”, afirma a pesquisadora. “Na obra de Qorpo-Santo, é difícil distinguir o que é programático e intencional, do que é acidental e inacabado”, comenta Gonçalves. Não se tem conhecimento de quais autores o influenciaram, mas sabe-se que ele “tinha preferências conservadoras, atestando apreço pela literatura clássica e pela tradição literária ocidental”, revela a pesquisadora.

A obra de José Joaquim de Campos Leão ficou esquecida por aproximadamente 100 anos após sua morte, em 1883, na cidade de Porto Alegre–RS, aos 54 anos de idade, de tuberculose pulmonar. Isso se deve ao fato de que seus contemporâneos o consideravam louco e, então, não acreditavam que os escritos fossem literatura. “Ele teve sua produção artística praticamente ignorada por seus contemporâneos”, afirma Gonçalves. “Qorpo-Santo foi transformado em uma espécie de mito porto-alegrense, por conta dos transtornos psíquicos que o atormentaram”, completa.

No século XX, porém, os críticos viram em Campos Leão um “provável precursor das experiências dramáticas modernas”, comenta a pesquisadora. A partir da década de 1960, ele passou a ser mais reconhecido no meio acadêmico e teatral. “Sozinho em seus pensamentos, ele encontrou na escrita a forma de expressar seu parecer sobre a realidade que o cercava e a qual, possivelmente, não se adequava”, acredita Gonçalves. “Qorpo-Santo é lido, hoje, como um autor revolucionário e subversivo, justamente porque sua originalidade não encontra correspondentes no seu tempo, sendo, portanto, um escritor único”, define Azevedo.


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