Qorpo Patólico?!

Relações Patafísicas com o Patolicismo.

http://paticano.com/

Relações Fílmicas



Monty Python ou The Pythons , foram os criadores e intérpretes da série cômica Monty Python's Flying Circus, um programa de televisão britânico que foi ao ar pela primeira vez em 5 de outubro de 1969. Como série televisiva, consistiu de 45 episódios divididos em 4 temporadas. Entretanto o fênomeno Python não se limitou a apenas isso, espalhando-se por shows, filmes, programas de rádio e diversos jogos de computador e livros, além de lançar seus seis integrantes ao estrelato.
Sua influência na comédia chegou a ser comparada ao impacto causado na música pelos Beatles. Enquanto no humor britânico sua presença sempre foi nítida, nos Estados Unidos ela é especialmente evidente em programas de conteúdo absurdo como South Park, Adult Swim, trechos de Late Night with Conan O'Brien, além do programa Saturday Night Live. O termo pythonesque, em tradução livre 'pythonesco', está em dicionários da língua inglesa para indiciar algo surreal ou absurdo.

Relações Fílmicas

Irmãos Marx



O primeiro filme dos Irmãos Marx que vimos aqui, Animal Crackers, pareceu me,
e assim foi visto por todo o mundo, uma coisa extraordinária, a liberação, através
da tela, de uma magia particular que as relações habituais entre as palavras e as imagens
não revelam, e, se há um estado caracterizado, um grau poético distinto do espírito que
se possa chamar de surrealismo, Animal Crackers participa plenamente dele.
É difícil dizer em que consiste essa espécie de magia, em todo caso é algo que
talvez não seja especificamente cinematográfico, mas que também não pertence ao
teatro, e de que apenas alguns poemas surrealistas bem sucedidos, se os houver,
poderiam dar uma idéia. A qualidade poética de um filme como Animal Crackers
poderia corresponder à definição do humor, se esta palavra há muito tempo não tivesse
perdido seu sentido de liberação integral, de dilaceramento de toda realidade no espírito.
Para compreender a originalidade poderosa, total, definitiva, absoluta (não estou
exagerando, simplesmente tento definir as coisas, e tanto pior se o entusiasmo me
arrebata) de um filme como Animal Crackers e, em alguns momentos (em todo caso,
em toda a parte final), como Monkey Business, seria preciso acrescentar ao humor a
noção de algo inquietante e trágico, uma fatalidade (nem feliz nem infeliz, mas difícil de
formular) que se esgueiraria por trás dele como a revelação de uma doença atroz num
perfil de absoluta beleza.
Em Monkey Business reencontramos os Irmãos Marx, cada um com seu tipo,
seguros de si e preparados, sente-se, para agarrar as circunstâncias pelo colarinho. Mas,
enquanto em Animal Crackers', e desde o começo, cada personagem quebrava a cara,
aqui se assiste, durante três quartas partes do filme, ao jogo de palhaços que se divertem
e fazem graça, algumas muito boas, e é apenas no fim que as coisas encorpam, que os
objetos, os animais, os sons, o patrão e seus empregados, o anfitrião e seus convidados,
que tudo isso se exaspera, se precipita e se revoluciona, sob os comentários ao mesmo tempo extasiados e lúcidos de um dos Irmãos Marx, arrebatado pelo espírito que ele
conseguiu enfim desencadear e do qual parece ser um comentário estupefato e
passageiro. Nada é tão alucinante e terrível quanto essa espécie de caça ao homem,
como a luta entre rivais, a perseguição nas trevas de um estábulo, de um celeiro onde
por todo lado pendem teias de aranha, enquanto homens, mulheres e animais vêem-se
no meio de um amontoado de objetos heteróclitos cujo movimento ou ruído terão cada
um seu papel.
O fato de em Animal Crackers uma mulher de repente cair de pernas para cima,
num sofá, e mostrar por um instante tudo o que gostaríamos de ver, ou de um homem de
repente se jogar sobre uma mulher num salão, dar com ela alguns passos de dança e em
seguida estapeá-la dentro do ritmo, mostra uma espécie de liberdade intelectual em que
o inconsciente de cada personagem, comprimido pelas convenções e costumes, vinga-se
e ao mesmo tempo vinga nosso inconsciente; mas o fato de em Monkey Business um
homem acuado se jogar sobre uma linda mulher que encontra e dançar com ela,
poeticamente, numa espécie de busca do encanto e da graça das atitudes mostra uma
reivindicação espiritual dupla, e mostra tudo o que há de poético e talvez de
revolucionário na graça dos Irmãos Marx.
Mas o fato de a música dançada pelo casal do homem acuado e da linda mulher
ser uma música de nostalgia e evasão, uma música de alívio, uma música de liberação,
indica o lado perigoso de todas essas blagues humorísticas e mostra que o espírito
poético quando se exerce tende sempre a uma espécie de anarquia fervilhante, a uma
desagregação integral do real pela poesia.
Se os americanos, a cujo espírito pertence esse tipo de filme, só querem entender
esses filmes humoristicamente, e em matéria de humor sempre se mantêm apenas nas
margens fáceis e cômicas da significação dessa palavra, pior para eles, mas isso não nos
impedirá de considerar o fim de Monkey Business como um hino à anarquia e à revolta
integral, o fim que põe o berro de um bezerro no mesmo nível intelectual e lhe atribui a
mesma qualidade de dor lúcida que ao grito de uma mulher com medo, o fim em que
nas trevas de um celeiro sujo dois criados raptores trituram à vontade os ombros nus da
filha do patrão e tratam de igual para igual com o patrão desamparado, tudo isso em
meio à embriaguez, também intelectual, das piruetas dos Irmãos Marx. E o triunfo de
tudo isso está na espécie de exaltação ao mesmo tempo visual e sonora que todos esses
acontecimentos assumem nas trevas, no grau de vibrações que eles atingem e na espécie
de forte inquietação que sua reunião acaba por projetar no espírito.

Antonin Artaud  -O Teatro e Seu Duplo-

OQUPA MEU SANTO 2013


Trabalho final da turma B de Atuação IV, livremente baseado nas obras de Qorpo Santo e no livro Cães da Província de Luís Antônio de Assis Brasil.

Orientação:
André Rosa 
Celina Alcântara 
Suzi Weber 

Com:
Alinia Pistoia 
Bruno Fernandes 
Deisy Meneghel 
Diogo Verardi 
Diones Camargo 
Gildo Santos 
Glória Souza Martins 
Juçara Gaspar 
Laura Lima 
Marcelo Mertins 
Paula Nunes Lages 
Renan Kummer 
Rita Spier 
Vandaceli Bressiani 
Vanessa Kuci 

Serviço:
Onde: Biblioteca Pública do Estado - R.Riachuelo, 1190
Quando: 04 e 05/12/2013 às 10h


RAPIVALHO JAMAIS ESPERARIA GODOT



RAPIVALHO JAMAIS ESPERARIA GODOT: UM
ESTUDO DO TEMPO EM QORPO-SANTO E
SAMUEL BECKETT

O tempo é elemento importante na dramaturgia de Qorpo Santo
e Samuel Beckett. No presente artigo estudaremos as
apresentações e formulações do tempo na obra desses dois
dramaturgos e sua importância como fator determinante da
inserção de Beckett no teatro do absurdo e da concepção de Qorpo Santo
como precursor desse movimento teatral.

Rodrigo Costa Marinho
William Valentine Redmond

O Artigo na Íntegra pode ser conferido em: http://www.cesjf.br/revistas/cesrevista/edicoes/2006/qorpo_santo.pdf

O INCRÍVEL EXÉRCITO DE BRANCALEONE

A DRAMATURGIA BRANCALEÔNICA DE QORPO SANTO


L' Armata Brancaleone, sequência de abertura



João André Brito Garboggini
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Teatro brasileiro, cinema italiano, dramaturgia
Em minha dissertação de mestrado, realizei uma análise fílmica
de “L’Armata Brancaleone” (1965/66) do cineasta italiano Mario
Monicelli. Uma das etapas do trabalho consistiu numa análise da estrutura
cinedramática do filme.
Para dar continuidade às pesquisas desenvolvidas no mestrado,
estou apresentando este trabalho, com a intenção de fundi-lo a um
processo de trabalho experimental em Artes Cênicas que venho desenvolvendo
desde 1997 e que se estendem em direção ao teatro do
absurdo e posteriormente à obra do dramaturgo gaúcho José Joaquim
de Campos Leão – Qorpo Santo (1829-1883). Trata-se de uma aplicação
do método de análise utilizado no mestrado como forma de
desmembramento do roteiro fílmico, para a elaboração de uma dramaturgia
calcada na obra de Qorpo Santo.
Personagens brancaleônicas em Qorpo Santo
Assistindo ao filme “L’Armata Brancaleone” de Mario Monicelli é
possível enxergar naquele exército um grupo de bufões (BAKHTIN,
1987:7) que evolui num jogo encenado em cada local por onde passa,
utilizando uma linguagem dialetal, na qual os roteiristas Age e Sacarpelli,
junto a Monicelli e Suso Cecchi D’Amico, utilizaram o seu gosto
de deformar as palavras: um idioma híbrido, criado para o filme,
sem compromisso com a reprodução histórica literal, mas com a construção
de uma atmosfera relacionada à Idade Média da Península Itálica.
A criação desse simulacro lingüístico ficcional para o filme de Monicelli
recupera a diversidade dialetal das máscaras da commedia dell’arte.
O grupo cômico de L’Armata Brancaleone estaria mascarado de
“Exército”, sendo que Brancaleone seria uma espécie de líder fanfarrão
e desastrado como era a máscara do Capitano, uma das personagens
típicas da commedia dell’arte. Com efeito, trata-se de um pusilânime
que presume farroncas de valentão, como a personagem Miles
Gloriosus1 da comédia plautina.
Partindo do pressuposto de que Qorpo Santo, em sua dramaturgia,
carrega certos traços que poderiam ser chamados “brancaleônicos”,
desde a elaboração de uma forma de caricatura verbal até a possibilidade
de sátira a um nacionalismo quixotesco, entre outras coisas, procuro
aplicar o método de análise realizado na dissertação de mestrado
para desenvolver uma cinedramaturgia cômica, criando uma espécie
de “Revista do Qorpo Santo”, a partir da identificação de características
cômicas presentes na obra do autor gaúcho que possam aproximar-
se dos procedimentos do teatro cômico popular italiano.
Como no filme de Monicelli, as comédias de Qorpo Santo estão
repletas de personagens que buscam suas identidades ainda incompletas,
apoiando-se na perseguição de objetivos incertos que comprometem
sua própria coerência cênica, levando-os a falharem, criando um
ambiente, onde o nonsense, característico do universo proto-surrealista
do autor gaúcho, transforma as personagens em meros esboços do
ser humano.
Para a composição dramatúrgica, o ponto de partida tem como
base a estrutura do roteiro de L’armata Brancaleone que, por ser
episódica, possibilita a formatação dos diversos quadros que podem
compor uma revisitação da obra de Qorpo Santo.
Levando em conta certas características bufonescas perceptíveis
nas personagens de Qorpo Santo, procuro verificar se os grupos de
personagens formariam bandos de bufões que permeiam as cenas e
desenrolam o fio condutor de uma ação teatralizada. No entanto esse
fio, em vez de fluir se afrouxa, podendo ser interrompido, causando a
impressão de construir uma rede de itinerários, obstáculos, perseguições,
enganos que ameaçam a linearidade da dramaturgia.
Personagens e Narrativa: dois elementos entrelaçados
A criação de personagens em L´armata Brancaleone é fundamental.
Isto também remonta à tradição teatral popular da commedia dell’
arte. Monicelli provavelmente parte da criação de suas personagens
para chegar às situações que compõem os roteiros. A presença de elementos
teatrais e a elaboração de personagens tipificadas (VENEZIANO,
1991:120) em L’armata Brancaleone pode ser percebida, por exemplo,
logo na animação de abertura do filme, que aponta os movimentos
e a aparência das personagens que são como marionetes.
A movimentação das figuras expostas nessa animação inicial reforça
sua aparência desumanizada. Personagens planas, portanto tipificadas que, de certa maneira, correspondem a uma bidimensionalidade
que abole sua perspectiva, de modo que, ao relacionar tais figuras
animadas com as personagens das peças de Qorpo Santo, se torna
possível atribuir a estas últimas características de bonecos manipuláveis,
com movimentos mecânicos, construídas a partir de gestualidades
exteriorizadas, o que lhes confere comicidade. Esta criação de personagens
planas e de ação mecanizada aparece como uma opção para a
aproximação das personagens de Qorpo Santo, na medida em que o
autor gaúcho não individualiza as suas personagens e possibilita a criação
de alguns tipos fixos recorrentes em diversas de suas comédias.
Procedimentos e elementos
O procedimento para a realização deste trabalho consiste na transposição
do método de análise fílmica que apliquei no filme L’armata
Brancaleone, para o desenvolvimento de uma escritura cinedramatúrgica
que possibilite a elaboração de um roteiro cinematográfico, levando
em consideração a estrutura cinedramática verificada no desmembramento
em episódios realizado em L’armata Brancaleone.
A constatação das relações entre as manifestações de teatro popular
e o filme de Monicelli possibilitaram perceber no filme dois nexos
importantes, que podem ser apropriados para a elaboração do roteiro
fílmico:
1) a elaboração de personagens fortemente construídas a partir
de suas características sociais e sua aparência exterior, deixando
em segundo plano seus conflitos interiores;
2) uma estrutura narrativa forjada sobre um roteiro de episódios
aparentemente autônomos entre si, que conferem ao filme
uma linearidade tênue alicerçada na jornada do grupo em
direção a seu objetivo final.
A idéia é aplicar esses dois itens para a confecção de um roteiro
inicial com o objetivo de elaborar um mapeamento da obra de Qorpo
Santo, a partir do qual serão criadas as cenas que comporão o roteiro
final. Percebendo uma relação entre a elaboração das personagens e o
desenvolvimento da ação cênica, é possível que elas existam antes da
formação do roteiro e este possa ser construído a partir de suas características.
Existe também a possibilidade de que o roteiro possa ter sua
forma já estruturada, como seqüência narrativa e, por sua vez, as personagens
serem construídas no desenrolar das cenas.
Assim pretendo experimentar essas duas vias, selecionando uma
delas para criar um roteiro, a partir da leitura da obra teatral de Qorpo
Santo, após analisar as personagens, com seus atributos e funções
(PROPP, 1984:81) em suas ações teatrais, desmembrando as seqüências
de acontecimentos que engendram os episódios constituintes da
estrutura que comporá, ao fim e ao cabo, o roteiro como um todo.
No plano da criação das personagens, a intenção é enfatizar os
atributos das personagens, em três rubricas fundamentais: aparência e
nomenclatura, particularidades de entrada em cena e habitat (PROPP,
1984:81-82).
Nota
1 Personagem protagonista da comédia Miles Gloriosus de Plauto.

Publicado em: Anais do IV Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Memória ABRACE X) Rio de Janeiro 2006

O que vai mal na literatura brasileira?

Décio Pignatari - O Brasil perdeu a oportunidade, tomou uma posição contrária à literatura mundial. Por exemplo: a prosa literária hispano-americana – ela entrou com força total no mundo experimental. De Borges a Puig, nenhum deles deixou de passar pela leitura, atenta e completa, de James Joyce. Eles leram toda a vanguarda e fizeram uma leitura diferente nos seus países. No Brasil, todo o mundo acha que Joyce é elitista, “que ninguém entende”, “bobagem”, “jogo de palavras”. Nós combatemos o experimentalismo e hoje não sabemos mais escrever. Não dizemos absolutamente nada de novo sobre a situação brasileira ou literária em geral. Nada. Atualmente, a prosa criativa brasileira é de terceira categoria. Quando nos anos 70 houve o boom da grande prosa latino-americana, nós ficamos para trás e hoje estamos a reboque deles. Mesmo no Rio Grande do Sul: quem dá o valor devido para o Qorpo Santo? Pouca gente. Quando eu estive aí nos anos 60 me apresentaram a obra dele, fiquei deslumbrado. Agora mesmo, que foram reunidos quase todos os seus poemas num volume, um monte de panacas – não de críticos literários, esses não existem no Brasil – desancou sua poesia, dizendo que ela não significa nada, que é apenas “mais uma mania de alguns pseudo-vanguardistas“. No entanto, é só ler o poema Linguagem, presente nesta coleção, para concluir que é melhor do que todos os livros de 95% de todos os poetas brasileiros – um verdadeiro prodígio. Sem falar nas suas obras para teatro, que deveriam merecer montagens mais interessantes.
Revista Aplauso

Aos 72 anos, o poeta Décio Pignatari já não é mais um ativista do concretismo, movimento que ajudou a fundar há 50 anos. Mas continua tão polêmico quanto naquela época. Nesta entrevista a APLAUSO, exalta Qorpo Santo e Dionélio Machado e faz duras críticas aos rumos tomados pela literatura brasileira.
Por Cristiano Bastos

...








“Se nos fosse dado conhecer o sentido de algumas obras que nasceram do descompasso entre o autor e seu tempo, obras que, remando contra a maré, afastaram-se das diretrizes predominantes do ambiente literário a que pertenciam, provavelmente os textos do gaúcho Qorpo-Santo mereceriam destaque em uma vertente “fora do esquadro”, que desde a poesia picaresca de Gregório de Matos fornece dados para a formação de uma tradição caracterizada pelas vias da negatividade e da desconstrução, ganhando registro em alguns autores responsáveis pela renovação da escrita literária brasileira em momentos distintos da sua formação. Como fonte privilegiada para o estabelecimento de uma dicção poética na contramão dos cânones oficiais da literatura, os gêneros cômicos e, em especial, o nonsense forneceriam o suporte para uma composição de verso livre que, no fundo, procurava subverter as formas discursivas dominantes e numa etapa posterior, propiciariam o aparecimento de obras paradigmáticas do novo perfil de modernidade que o país necessitava conquistar. [...]
Alguns desses procedimentos antecipariam, de forma ainda embrionária, as experiências mais radicais dos poetas modernistas brasileiros como, por exemplo, a escrita automática, o verso livre, as revelações do inconsciente e as combinações e colagens de fragmentos textuais dissonantes, experiências essas que ficaram para sempre associadas aos artistas dos movimentos dadaísta e surrealista. No caso brasileiro, esses elementos constituiriam uma vertente do desvio, confirmando, dentre outras coisas, algumas das fontes de pesquisa e investigação poética presentes em autores como Oswald de Andrade.”
(Denise Espírito Santo. “A poesia nonsense de Qorpo-Santo”. In: Qorpo-Santo.Poemas. Organização de Denise Espírito Santo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000)

Sinto ranjer de vez emquando a minha cabeça.

 Passarei 24 h sem fumar nem beber água , vistoque huma e outra couza estão fazendo-me mau estômago.

 Estão estes feijões que janto - relacionados com espiritos; por isso - finissimos.

Muito tem commigo hoje conversado as minhas tripas!

130 anos sem a incógnita lucidez de Qorpo-Santo

Labirinto - Foto Guga Melgar

O escritor Qorpo-Santo morreu há 130 anos e ainda está por ser descoberto, como o fizeram a seu modo Cia. Alfândega 88 (em 'Labirinto', foto de Guga Melgar), Ciasão Jorge de Variedades e Grupo Giramundo, que montaram seus textos nos últimos anos. Fábio Prikladnicki reporta a arte literária desse gaúcho que pede ser lido e visto com mais lucidez.
A reportagem de Fábio foi publicada também no site Teatro Jornal.
Pode ser conferida em  http://teatrojornal.com.br/2013/11/130-anos-sem-a-incognita-lucidez-de-qorpo-santo/

CORUJA, QORPO-SANTO & JACARÉ: 30 PERFIS HETERODOXOS

A literatura é uma maravilha, e todo mundo deveria ler – duas afirmações que ninguém discute. O mais raro, porém, é encontrarmos alguém capaz de, sem tirar a graça da coisa toda, nos abrir os olhos para infindáveis prazeres das letras.
Um desses raros talentos é Luís Augusto Fischer, e sortudos são seus alunos, leitores, ouvintes, interlocutores... Com a maestria adquirida em mais de três décadas de ensino de literatura, sobretudo a brasileira, Fischer se tornou conhecido por abordar os mais complexos aspectos de obras e autores usando para isso tão somente uma linguagem coloquial, como quem troca dois dedos de prosa.

Coruja, Qorpo-Santo e Jacaré reúne trinta perfis de escritores e intelectuais “de cabeceira” do autor. E o resultado, após a leitura, é o mesmo de uma aula de literatura perfeita: olhos brilhando pelo conhecimento alcançado e a vontade de ler mais e mais.

Um Autor ainda fora de lugar


Morto há 130 anos, o escritor Qorpo-Santo continua sendo um nome a ser descoberto

Tido como louco, depois alçado à condição de precursor do teatro do absurdo, o escritor gaúcho ainda precisa ser lido e devidamente compreendido

Ilustração Edu Olveira
Sem homenagens de relevo, os 130 anos de morte de Qorpo-Santo (1829 – 1883) foram completados no dia 1º de maio. A ausência do dramaturgo, poeta e escritor no calendário cultural sinaliza que este gaúcho de Triunfo ainda é – para não perder o jogo de palavras – um corpo estranho na literatura brasileira.
Qorpo-Santo – batizado José Joaquim de Campos Leão – é uma figura do século 19 redescoberta cem anos depois, por iniciativa do professor Aníbal Damasceno Ferreira, morto em abril de 2013. Na década de 1950, ele se encarregou de encontrar volumes da obra do escritor com colecionadores e passou a divulgá-la entre a intelectualidade porto-alegrense. Seu grande achado foi um volume com 17 peças (uma delas não concluída) que representa, até hoje, a parte mais conhecida da produção de Qorpo-Santo. A primeira montagem veio em 1966: um espetáculo com três desses textos, sob direção de Antônio Carlos de Sena, amigo de Aníbal. Foi um sucesso de público e de crítica. Depois, o professor de literatura Guilhermino Cesar tornou-se um dos divulgadores dessa obra dramática.
Uma segunda montagem do espetáculo de Sena, apresentada no Rio, em 1968, selou o reconhecimento nacional. Qorpo-Santo acabou saudado como precursor do teatro do absurdo. À época, o crítico Yan Michalski, referência no país, escreveu que a redescoberta do autor "torna parcialmente obsoletos todos os livros de história da dramaturgia brasileira".
A ideia de Qorpo-Santo como precursor do teatro do absurdo havia inspirado o espetáculo que marcou a estreia mundial de sua obra. Designação que se refere à dramaturgia de autores europeus como Beckett, Ionesco e Arrabal, o teatro do absurdo estava em voga na Capital. O diretor Antônio Carlos de Sena havia sido assistente de direção de As Cadeiras e ator em Jacques ou a Submissão, ambas escritas por Ionesco e dirigidas por Fausto Fuser, professor do Curso de Arte Dramática (atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS). Sena também atuara em Piquenique no Front, de Arrabal, com direção de Linneu Dias. Antes, segundo Sena, houve montagens em Porto Alegre e em Caxias do Sul de A Cantora Careca, a obra mais conhecida de Ionesco.
– O público sempre reagia muito bem às peças do teatro do absurdo, até porque eram muito engraçadas. E a do Qorpo-Santo também. O público ria do início ao fim – lembra o diretor (leia seu depoimento sobre a montagem de 1966 na página 8).
Flávio Oliveira, compositor que criou a trilha sonora original do espetáculo, completa:
– Nós reconhecemos a originalidade de Qorpo-Santo e a sua importância, na contramão de certo ranço acadêmico-literário da época e à revelia de certa intelectualidade que não enxergava a sua importância.
Qorpo-Santo brasileiro
O rótulo de precursor do teatro do absurdo era uma maneira de legitimar a escrita de Qorpo-Santo, tornando sua poética atual nos anos 1960. Passado o tempo, vieram novas hipóteses. No livro Qorpo-Santo – Surrealismo ou Absurdo (editora Perspectiva), o pesquisador Eudinyr Fraga associou-o ao surrealismo, outro movimento originário da Europa.
Estudiosos de sua obra questionam, no entanto, se não seria o caso de reconciliar o autor com a tradição brasileira. Um dos pioneiros nesse esforço foi Flávio Aguiar, professor aposentado de literatura da USP, que publicou, em 1975, o livro Os Homens Precários (A Nação/Instituto Estadual do Livro-RS), resultado de sua dissertação de mestrado.
– Nela, eu demonstrei, e não apenas afirmei, que o teatro de Qorpo-Santo estava solidamente ancorado na tradição teatral brasileira do século 19, na comédia de costumes, no teatro realista, nas farsas portuguesas de Antonio José, que na época eram consideradas parte do teatro brasileiro. Só que ele misturou tudo, num coquetel extremamente original para a época, que não foi nem poderia ser compreendido. Nesse sentido, sim, ele foi um precursor das vanguardas do século 20 – diz Aguiar.
Já a pesquisadora Denise Espírito Santo defende que o autor pode ser associado a uma certa tradição do romantismo do século 19:
– O romantismo brasileiro é muito eclético. Temos uma vertente que o (crítico e historiador da literatura) Antonio Candido chama de poesia pantagruélica, que inclui autores como Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, que eram poetas mais lunares. Muitos faziam uma poesia que tinha um sentido totalmente jocoso, um humor negro. Qorpo-Santo está inscrito, em certa maneira, dentro de uma tradição romântica que é essa do fora do lugar, do fora do esquadro.
Denise tem se dedicado a colocar em circulação outras vertentes da obra do autor, para além de sua conhecida dramaturgia. Em 2000, organizou Poemas (Contra Capa) e, em 2003, Miscelânea Quriosa (Casa da Palavra), com uma seleção de aforismos, textos autobiográficos e outros excertos. Em 2014, pretende publicar um volume exclusivamente de aforismos.
Toda a produção que se conhece do autor vem da Ensiqlopèdia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade. São nove volumes impressos pelo próprio Qorpo-Santo em 1877 que reúnem peças de teatro, poemas e outras produções. Desta coleção, são conhecidos seis volumes, que estão disponíveis para leitura, na íntegra, em versão fac-similar no site da biblioteca da PUCRS (www.pucrs.br/biblioteca/qorposanto). Leda Maria Martins, professora de literatura e de teatro da UFMG e autora de O Moderno Teatro de Qorpo-Santo (Editora UFMG), aponta a necessidade de uma nova edição impressa da Ensiqlopèdia que oportunize uma visão global:
– Precisamos reeditar todo o Qorpo-Santo. Se houver outros pesquisadores interessados, me coloco à disposição. É ótimo ter estudos sobre aspectos de sua obra, é fundamental para recolocá-lo na agenda do teatro brasileiro. Mas precisamos de uma visão mais geral. Precisamos tomar a Ensiqlopèdia como objeto de estudo. Falta essa dimensão da criação em sua transversalidade, pois nisso ele também foi inovador.
Lúcido alucinado
A apreciação da obra ainda é turvada pela biografia. Considerado louco em sua época, Qorpo-Santo teve a qualidade de sua produção questionada – um espectro que assombra sua memória até hoje. Um dos aspectos que contribuíram para isso foi sua iniciativa de criar uma reforma ortográfica da língua portuguesa baseada na pronúncia das palavras. Daí a inusitada grafia ("qorpo", e não "corpo") que utilizou em seu próprio codinome – aliás, decorrente de uma iluminação espiritual que acreditou ter recebido em determinado momento.
Essa mitologia levou Qorpo-Santo a se tornar, ele mesmo, um personagem: parte de sua história é recuperada, com o recurso da ficção, no romance Cães da Província (1987), de Luiz Antonio de Assis Brasil. O livro vai inspirar uma peça, dirigida por Inês Marocco, que deve estrear em 2014 e que contará também com trechos de textos de Qorpo-Santo.
Também no ano que vem, devem entrar em cartaz montagens dirigidas pela pesquisadora Maria Aparecida Ramos Dias, entre elas Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte e Lanterna de Fogo. Com produção da Fundação Cultural Qorpo-Santo, em Triunfo, os espetáculos estrearão na cidade natal do autor e depois devem ter sessões em Porto Alegre.
– Em Triunfo, os 130 anos de morte não passaram em branco. Realizamos saraus, debates. E estamos criando um grupo de estudos – diz Maria Aparecida.
Entre as montagens de textos de Qorpo-Santo a que o público gaúcho pôde assistir nos últimos tempos, estiveram Dr. QS – Quriozas Qomédias (2005), do grupo gaúcho Depósito de Teatro, com direção de Roberto Oliveira (montagem que arrematou cinco Prêmios Açorianos de Teatro da prefeitura de Porto Alegre, incluindo melhor espetáculo), e, mais recentemente, Labirinto, produção carioca do diretor Moacir Chaves apresentada no Porto Alegre Em Cena de 2011.
Em um artigo reunido no livro Coruja, Qorpo-Santo & Jacaré (L&PM), lançado neste ano, o professor de literatura da UFRGS Luís Augusto Fischer anota sobre a alegada loucura do autor: "O depoimento de dois contemporâneos converge para o desenho de uma figura esquisita, ao modo dos loucos que povoam as cidades. Em resumo, ele não foi reconhecido como um escritor, em nenhum sentido. Era um alucinado que escrevia". Falando à reportagem, Fischer defende:
– Como há essa pecha em torno dele, parece que não temos acesso direto a sua obra. Esse acesso é mediado. Mas não precisamos criar rótulos. Talvez seja melhor ler sua obra desprevenidamente. Sabemos que ele queria se comunicar. Fez jornal e escreveu teatro. São indícios de que queria entrar no circuito. Temos que parar de enquadrá-lo e começar a analisá-lo.
É hora de descobrir a lucidez de Qorpo-Santo.
Por Fábio Prikladnicki


Entrevista com Antônio Carlos Sena

Diretor lembra a primeira montagem conhecida do teatro de Qorpo-Santo

Antônio Carlos de Sena, 72 anos, fala sobre o espetáculo que estreou em 26 de agosto de 1966, no Clube de Cultura, em Porto Alegre


foto: Arquivo Pessoal
No depoimento a seguir, concedido em sua casa no bairro Santa Tereza, em Porto Alegre, o diretor teatral Antônio Carlos de Sena, 72 anos, lembra a história da primeira montagem conhecida do teatro de Qorpo-Santo.
O espetáculo estreou em 26 de agosto de 1966, no Clube de Cultura, em Porto Alegre, e apresentava três textos do autor, cem anos após terem sido escritos: As Relações Naturais, Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte e Mateus e Mateusa. Dois anos depois, uma remontagem foi apresentada no Rio, marcando a descoberta de sua obra em nível nacional.
Versos n’O Mocho
"Eu era amigo do Aníbal Damasceno Ferreira desde a infância porque ele era meu vizinho no bairro Azenha. Eu fazia teatro de bonecos, e o Aníbal era um estudioso autodidata da literatura gaúcha, atividade que o levou a descobrir autores que citavam Qorpo-Santo, mas sem conhecerem sua obra. Ele aparecia nessas citações como um tipo popular, meio amalucado e autor de versos que andavam pela Capital de boca em boca. Na década de 1950, o Aníbal começou a publicar esses versos n’O Mocho, nosso jornalzinho mimeografado. Também começou a procurar a obra dele, mas ninguém a conhecia."
O resgate dos livros
"No fim dos anos 1950, Aníbal chegou ao bibliófilo Dario de Bittencourt. Tomou emprestados três dos nove volumes escritos pelo Qorpo-Santo. Para divulgá-los, pensou no escritor e professor Guilhermino Cesar, a quem repassou os livros. Só que o Guilhermino nunca os devolveu. O que achou da leitura? Não se sabe. Em 1963, o professor Fausto Fuser, que havia vindo de São Paulo e ficou muito amigo meu e do Aníbal, se propôs a ir à casa dele resgatá-los. Não sabemos com quem ele falou, se com um filho, com uma empregada, mas conseguimos levar os três livros para o CAD (Curso de Arte Dramática, atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS)."
Coincidência inesperada
"Em 1963, Fuser estava ensaiando As Cadeiras, de Ionesco. Eu era assistente de direção. Sentamos e abrimos um dos livros do Qorpo-Santo, onde estavam as 17 peças de teatro dele. A primeira, Mateus e Mateusa, tem como protagonistas um casal de velhos que quer passar sua mensagem para o mundo. Em As Cadeiras, de Ionesco, também há um casal de idosos. Essas quatro personagens têm a rabugice elevada à quinta potência. A mensagem final de As Cadeiras vem de um orador, e o cara é mudo. Já o final da peça do Qorpo-Santo também tem a moral da história dita por outro personagem, que também faz algo sem sentido. Então, evidentemente, nos impressionamos muito com a coincidência. Acabou com o Fausto decidindo montar três peças do Qorpo-Santo (Mateus e Mateusa, As Relações Naturais e Eu Sou Vida; Eu não Sou Morte, que nós três achamos a melhor de todas), mas com o diretor do CAD, Angelo Ricci, proibindo a montagem ao saber que os livros haviam sido tirados da casa do Guilhermino Cesar – nós os havíamos mimeografado e devolvido para o Dario de Bittencourt."
Em busca de um elenco
"Saí do curso e fui trabalhar no Clube de Cultura como diretor de teatro. E o Aníbal sempre insistindo (na montagem do teatro de Qorpo-Santo). Pois, em 1964, comecei a ensaiar com atores amadores que andavam pelo clube. Já sabíamos da importância do Qorpo-Santo como precursor, com aquela singularidade e com a qualidade teatral dos textos. Então, no início de 1966, fomos à diretoria do Clube de Cultura e insistimos para se investir em um elenco de maior expressão, profissional. Foi difícil fazer com que aceitassem a proposta. Era caro. Mas o Clube concordou e contratamos um elenco extraordinário, especialmente o naipe feminino. A estreia foi em agosto de 1966."
"Ou é gênio, ou sou louco"
"O Guilhermino, que já havia voltado depois de passar um tempo na Europa, foi convidado a assistir a um ensaio adiantado, para poder escrever a respeito. Foi e se entusiasmou. E escreveu mesmo um artigo para o Correio do Povo. Antes disso, o Aníbal distribuiu cópias das três peças para vários intelectuais e artistas de Porto Alegre para que se manifestassem. Nenhum se manifestou. Mas, depois do artigo do Guilhermino, e da própria estreia da montagem – vista por todos esses intelectuais, artistas, jornalistas –, a curiosidade em torno do nome do Qorpo-Santo aumentou. Em um momento ele era tido como louco, daqui a pouco já estavam dizendo que ele era precursor do teatro do absurdo! Foi quando o Guilhermino assumiu mesmo (a causa). Foi para o palco e disse assim: ‘Ou Qorpo-Santo é um gênio ou eu sou louco’."
Nervosismo e consagração
"O Aníbal ia fazer uma ponta, mas, de tão nervoso, não a fez. E eu tive que entrar em cena. Foi uma noite muito tensa e importante, sabíamos que assim seria. No final, houve um debate acaloradíssimo. Era a primeira vez no mundo que se encenava Qorpo-Santo! No dia seguinte, saiu uma página praticamente inteira na Folha da Tarde com uma crítica do Walter Galvani endeusando o espetáculo. Da mesma forma, quando levamos o espetáculo ao Rio – depois de ele ficar uma temporada no Teatro de Equipe, em Porto Alegre –, o Yan Michalski, crítico mais conceituado do Brasil à época, ficou entusiasmadíssimo. Disse que o Qorpo-Santo era o precursor do teatro do absurdo e que a história da literatura dramática no Brasil, talvez no mundo, teria que ser modificada a partir daquela noite. Aquele marketing entre a intelectualidade se repetiu no Rio. E deu certo. Pena que o Aníbal, de tão nervoso, tenha perdido a estreia carioca. Perdeu um momento histórico."
Montagem profissional
"Uma coisa que me deixa brabo: muitos estudiosos dizem que a estreia foi apresentada por alunos do CAD. Não é verdade. Muitos dos contratados tinham sido alunos do CAD, sim, mas já eram profissionais. A música original, extraordinária, foi composta pelo Flávio Oliveira. Foi uma montagem profissional."

 Por Fábio Prikladnicki

A ENCENAÇÃO E A METAFÍSICA


No Louvre há uma pintura de um primitivo, conhecido ou desconhecido, não sei,
mas cujo nome nunca será representativo de um período importante da história da arte.
Esse primitivo chama-se Lucas van den Leyden e a meu ver ele torna inúteis e
abortados os quatrocentos ou quinhentos anos de pintura que vieram depois dele. A tela
de que estou falando intitula-se As filhas de Loth, tema bíblico em moda na época. Claro
que, na Idade Média, a Bíblia não era entendida como a entendemos hoje, e este quadro
é um exemplo estranho das deduções místicas que podem ser extraídas dela. Em todo
caso, seu patético é visível mesmo de longe, impressiona o espírito com uma espécie de
harmonia visual fulminante, ou seja, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único
olhar. Mesmo antes de poder ver do que se trata, sente-se que ali está acontecendo algo
grandioso, e os ouvidos, por assim dizer, emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos.
Um drama de alta importância intelectual, ao que parece, é captado como uma brusca
reunião de nuvens que o vento, ou uma fatalidade muito mais direta, tivesse levado a
colocar seus relâmpagos em confronto.
Com efeito, o céu do quadro é escuro e carregado, mas mesmo antes de
conseguir distinguir que o drama nasceu no céu, se passa no céu, a particular iluminação
da tela, o emaranhado das formas, a impressão que se tem de longe, tudo isso anuncia
uma espécie de drama da natureza, cujo equivalente eu desafio qualquer pintor dos
Períodos Áureos da pintura a nos propor.
Uma tenda ergue-se à beira-mar, diante da qual Loth, sentado com sua couraça e
uma barba do mais lindo vermelho, observa a evolução de suas filhas, como se
assistisse a um festim de prostitutas.
E, de fato, elas se exibem, umas como mães de família, outras como guerreiras,
penteiam os cabelos e se paramentam, como se nunca tivessem tido outro objetivo além
de agradar ao pai, servir-lhe de brinquedo ou instrumento. Surge assim o caráter
profundamente incestuoso do velho tema que o pintor desenvolve aqui em imagens
apaixonadas. Prova de que ele compreendeu perfeitamente como um homem moderno,
ou seja, assim como nós poderíamos compreendê-la, a profunda sexualidade do tema.
Prova de que seu caráter de sexualidade profunda, mas poética não lhe escapou, como
não nos escapa.
À esquerda da tela, e um pouco em segundo plano, eleva-se a alturas prodigiosas
uma torre preta, apoiada na base por todo um sistema de rochedos, plantas, caminhos
sinuosos delimitados por marcos, pontilhados por casas aqui e ali. E, por um feliz efeito
de perspectiva, um desses caminhos de repente se destaca do emaranhado através do
qual se infiltrava, atravessa uma ponte, para finalmente receber um raio dessa luz de
tempestade que transborda das nuvens, aspergindo toda a região de modo irregular. O
mar ao fundo da tela é extremamente alto e, além disso, extremamente calmo,
considerando-se o emaranhado de fogo que fervilha num canto do céu.
De repente, no crepitar de fogos de artifício, através do bombardeio noturno das
estrelas, dos raios, das bombas solares, vemos de repente revelar-se a nossos olhos,
numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, alguns detalhes da paisagem: árvores,
torre, montanhas, casas, cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sempre
ligadas em nosso espírito à idéia desse dilaceramento sonoro; não é possível exprimir
melhor esta submissão dos diversos aspectos da paisagem ao fogo manifestado no céu
do que dizendo que, embora tenham luz própria, permanecem relacionados ao fogo
como espécies de ecos amortecidos, como pontos de referência vivos, nascidos do fogo
e ali colocados para permitir que ele exerça toda a sua força de destruição.
Existe, aliás, no modo pelo qual o pintor descreve esse fogo alguma coisa de
terrivelmente enérgico e perturbador, como um elemento ainda em ação e móvel numa
expressão imobilizada. Pouco importa o meio pelo qual esse efeito é alcançado, ele é
real; basta ver o quadro para convencer-se disso.
Seja como for, esse fogo, que emana uma impressão de inteligência e de
maldade que ninguém poderia negar, serve, por sua própria violência, de contrapeso no
espírito para a estabilidade material e densa do resto.
Entre o mar e o céu, mas à direita e no mesmo plano em perspectiva da Torre
Negra, avança uma delgada língua de terra coroada por um mosteiro em ruínas.
Essa língua de terra, por mais próxima que pareça da margem em que se ergue a
tenda de Loth, abre espaço para um golfo imenso no qual parece ter havido um desastre
marítimo sem precedentes. Barcos cortados ao meio e que não chegam a afundar
apóiam-se no mar como em muletas, enquanto ao lado flutuam seus mastros arrancados
e suas vergas.
Seria difícil dizer por que é tão total a impressão de desastre que provém da
observação de apenas um ou dois navios despedaçados.
Parece que o pintor conhecia alguns segredos relativos à harmonia linear e os
meios de fazê-la atuar diretamente sobre o cérebro, como um reagente físico. Em todo
caso, essa impressão de inteligência espalhada pela natureza exterior, e sobretudo no
modo de representá-la, é visível em vários outros detalhes do quadro, como testemunha
a ponte da altura de uma casa de oito andares que se ergue sobre o mar e onde
personagens em fila desfilam como as Idéias na caverna de Platão.
Pretender que são claras as idéias que se depreendem desse quadro seria falso.
Em todo caso, são de uma grandeza da qual a pintura que só sabe pintar, ou seja, toda a
pintura de vários séculos, nos desacostumou completamente.
Acessoriamente, ao lado de Loth e de suas filhas, há uma idéia sobre a
sexualidade e a reprodução, com Loth que parece ter sido colocado ali para aproveitarse
abusivamente de suas filhas, como um zangão.
É quase a única idéia social que a pintura contém.
Todas as outras são idéias metafísicas. Lamento pronunciar essa palavra, mas é o
nome delas; e eu diria até que sua grandeza poética, sua eficácia concreta sobre nós,
provém do fato de serem metafísicas, e que sua profundidade espiritual é inseparável da
harmonia formal e exterior do quadro.
Há ainda uma idéia sobre o Devir que os diversos detalhes da paisagem e o
modo pelo qual foram pintados, pelo qual seus planos se aniquilam ou se correspondem,
introduzem-nos no espírito tal como a música o faria.
Há uma outra idéia sobre a Fatalidade, expressa menos pelo aparecimento desse
fogo brusco do que pelo modo solene como todas as formas se organizam ou se
desorganizam abaixo dele, umas como que curvadas pelo vento de um pânico
irresistível, outras imóveis e quase irônicas, todas obedecendo a uma harmonia
intelectual poderosa, que parece o próprio espírito da natureza, exteriorizado.
Há também uma idéia sobre o Caos, outra sobre o Maravilhoso, sobre o
Equilíbrio; há até uma ou duas sobre as impotências da Palavra, cuja inutilidade essa
pintura extremamente material e anárquica parece nos demonstrar.
Em todo caso, digo que essa pintura é o que o teatro deveria ser, se soubesse
falar a linguagem que lhe pertence.
E faço uma pergunta:
Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa,
ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, isto é, tudo o que não
obedece à expressão através do discurso, das palavras ou, se preferirmos, tudo que não
está contido no diálogo (o próprio diálogo considerado em função de suas
possibilidades de sonorização na cena, e das exigências dessa sonorização) seja deixado
em segundo plano?
Como é que o teatro ocidental (digo ocidental porque felizmente há outros, como
o teatro oriental, que souberam conservar intacta a idéia de teatro, ao passo que no
Ocidente esta idéia - como todo o resto - se prostituiu), como é que o teatro ocidental
não enxerga o teatro sob um outro aspecto que não o do teatro dialogado?
O diálogo - coisa escrita e falada - não pertence especificamente à cena, pertence
ao livro; a prova é que nos manuais de história literária reserva-se um lugar para o teatro
considerado como ramo acessório da história da linguagem articulada.
Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que
se faça com que ela fale sua linguagem concreta.
Digo que essa linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da
palavra, deve satisfazer antes de tudo aos sentidos, que há uma poesia para os sentidos
assim como há uma poesia para a linguagem e que a linguagem física e concreta à qual
me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que expressa
escapam à linguagem articulada.
Perguntar-me-ão que pensamentos são esses que a palavra não pode expressar e
que, muito melhor do que através da palavra, encontrariam sua expressão ideal na
linguagem concreta e física do palco.
Responderei a esta pergunta um pouco mais tarde. Mais urgente me parece
determinar em que consiste essa linguagem física, essa linguagem material e sólida
através da qual o teatro pode se distinguir da palavra.
Ela consiste em tudo o que ocupa a cena, em tudo aquilo que pode se manifestar
e exprimir materialmente numa cena, e que se dirige antes de mais nada aos sentidos em
vez de se dirigir em primeiro lugar ao espírito, como a linguagem da palavra. (Sei muito
bem que também as palavras têm possibilidades de sonorização, modos diversos de se
projetarem no espaço, que chamamos de entonações. E, aliás, haveria muito a dizer
sobre o valor concreto da entonação no teatro, sobre a faculdade que têm as palavras de
criar, também elas, uma música segundo o modo como são pronunciadas,
independentemente de seu sentido concreto, e que pode até ir contra esse sentido - de
criar sob a linguagem uma corrente subterrânea de impressões, de correspondências, de
analogias; mas esse modo teatral de considerar a linguagem já é um aspecto da
linguagem acessória para o autor dramático, que ele já não leva em conta, sobretudo
atualmente, ao estabelecer suas peças. Portanto, deixemos isso de lado).
Essa linguagem feita para os sentidos deve antes de mais nada tratar de satisfazêlos.
Isso não a impede de, em seguida, desenvolver todas as suas conseqüências
intelectuais em todos os planos possíveis e em todas as direções. E isso permite a
substituição da poesia da linguagem por uma poesia no espaço que se resolverá
exatamente no domínio do que não pertence estritamente às palavras.
Sem dúvida seria bom que tivéssemos, para melhor compreender o que quero
dizer, alguns exemplos dessa poesia no espaço, capaz de criar como que imagens
materiais equivalentes às imagens das palavras. Esses exemplos serão vistos mais
adiante.
Essa poesia muito difícil e complexa reveste-se de múltiplos aspectos: em
primeiro lugar, os de todos os meios de expressão utilizáveis em cena2, como música,
2 Na medida em que se revelam capazes de aproveitar as possibilidades físicas imediatas que a cena lhes oferece para
substituir as formas imobilizadas da arte por formas vivas e ameaçadoras, através das quais o sentido da velha magia
dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura,
iluminação e cenário.
Cada um desses meios tem uma poesia própria, intrínseca, e depois uma espécie
de poesia irônica que provém do modo como ele se combina com os outros meios de
expressão; e é fácil perceber as conseqüências dessas combinações, de suas reações e de
suas destruições recíprocas.
Mais adiante voltarei a essa poesia, que só poderá ser totalmente eficaz se for
concreta, isto é, se produzir objetivamente alguma coisa através de sua presença ativa
em cena - se um som como no Teatro de Bali equivale a um gesto, e em vez de servir de
cenário, de acompanhamento de um pensamento, faz com que ele evolua, o dirige, o
destrói ou o transforma definitivamente, etc.
Uma forma dessa poesia no espaço - além daquela que pode ser criada com
combinações de linhas, formas, cores, objetos em estado bruto, como acontece em todas
as artes - pertence à linguagem através dos signos. E me deixarão falar um instante,
espero, deste outro aspecto da linguagem teatral pura, que escapa à palavra, da
linguagem por signos, gestos e atitudes que têm um valor ideográfico tal como existem
ainda em certas pantomimas não pervertidas.
Por "pantomima não pervertida" entendo a pantomima direta em que os gestos,
em vez de representarem palavras, corpos de frases, como em nossa pantomima
européia, que tem apenas cinqüenta anos, e que não passa de mera deformação das
partes mudas da comédia italiana, representam idéias, atitudes do espírito, aspectos da
natureza, e isso de um modo efetivo, concreto, isto é, evocando sempre objetos ou
detalhes naturais, como a linguagem oriental que representa a noite através de uma
árvore na qual um pássaro que já fechou um olho começa a fechar o outro. E uma outra
idéia abstrata ou atitude de espírito poderia ser representada por alguns dos inúmeros
símbolos das Escrituras; exemplo: o buraco da agulha pelo qual o camelo é incapaz de
passar.
Vê-se que esses signos constituem verdadeiros hieróglifos, em que o homem, na
medida em que contribui para formá-los, é apenas uma forma como outra qualquer, à
qual, em virtude de sua dupla natureza, ele acrescenta, no entanto um prestígio singular.
Essa linguagem que evoca ao espírito imagens de uma poesia natural (ou
espiritual) intensa dá bem a idéia do que poderia ser no teatro uma poesia no espaço
independente da linguagem articulada.
Seja o que for essa linguagem e sua poesia, observo que em nosso teatro, que
vive sob a ditadura exclusiva da palavra, essa linguagem de signos e de mímica, essa
pantomima silenciosa, essas atitudes, esses gestos no ar, essas entonações objetivas, em
suma, tudo o que considero como especificamente teatral no teatro, todos esses
elementos, quando existem fora do texto, constituem para todo o mundo a região baixa
do teatro, são chamados negligentemente de "arte", e confundem-se com aquilo que se
entende por encenação ou "realização"; e ainda é sorte quando não se atribui à palavra
encenação a idéia de uma suntuosidade artística e exterior, que pertence exclusivamente
às roupas, à iluminação e ao cenário.
E em oposição a esse modo de ver, modo que me parece bem ocidental, ou antes
latino, isto é, obstinado, diria que na medida em que essa linguagem parte da cena, onde
extrai sua eficácia de sua criação espontânea em cena, na medida em que se defronta
diretamente com a cena sem passar pelas palavras (e por que não imaginar uma peça
composta diretamente em cena, realizada em cena?), o teatro é a encenação, muito mais
cerimonial pode reencontrar, no plano do teatro, uma nova realidade; na medida em que cedem àquilo que se poderia
chamar de tentação física da cena.
do que a peça escrita e falada. Pedir-me-ão, sem dúvida, que explique o que há de latino
nesta visão oposta à minha. O que existe de latino é esta necessidade de utilizar as
palavras para expressar idéias que sejam claras. Para mim, no teatro como em toda
parte, idéias claras são idéias mortas e acabadas.
A idéia de uma peça feita diretamente em cena, esbarrando nos obstáculos da
realização e da cena, impõe a descoberta de uma linguagem ativa, ativa e anárquica, em
que sejam abandonadas as delimitações habituais entre os sentimentos e as palavras.
Em todo caso, e apresso-me em dizê-lo desde já, um teatro que submete ao texto
a encenação e a realização, isto é, tudo o que é especificamente teatral, é um teatro de
idiota, louco, invertido, gramático, merceeiro, antipoeta e positivista, isto é, um teatro
de ocidental.
Sei muito bem, por outro lado, que a linguagem dos gestos e das atitudes, que a
dança, a música são menos capazes de elucidar um caráter, de relatar os pensamentos
humanos de uma personagem, de expor os estados da consciência claros e precisos do
que a linguagem verbal, mas quem disse que o teatro é feito para elucidar um caráter,
para resolver conflitos de ordem humana e passional, de ordem atual e psicológica,
coisas de que nosso teatro contemporâneo está repleto?
Sendo o teatro tal como o vemos aqui, dir-se-ia que a única coisa que importa na
vida é saber se vamos trepar direito, se faremos a guerra ou se seremos suficientemente
covardes para fazer a paz, como nos arranjamos com nossas pequenas angústias morais
e se tomaremos consciência de nossos "complexos" (isto dito em linguagem erudita) ou
se nossos "complexos" acabarão por nos sufocar. É raro, aliás, que o debate se eleve ao
plano social e que se critique nosso sistema social e moral. Nosso teatro nunca chega ao
ponto de perguntar se por acaso esse sistema social e moral não seria iníquo.
Digo que o estado social atual é iníquo e deve ser destruído. E, se cabe ao teatro
preocupar-se com isso, cabe ainda mais à metralhadora. Nosso teatro nem é capaz de
colocar essa questão do modo ardoroso e eficaz que seria necessário, mas, mesmo que o
fizesse, estaria saindo de seu objeto, que para mim é algo superior e mais secreto.
Todas as preocupações enumeradas acima infestam o homem de um modo
inverossímil, o homem provisório e material, diria mesmo, o homem-carcaça. No que
me diz respeito, essas preocupações me repugnam, me repugnam no mais alto grau,
assim como quase todo o teatro contemporâneo, tão humano quanto é antipoético e que,
com exceção de três ou quatro peças, me parece ter o fedor da decadência e do pus.
O teatro contemporâneo está em decadência porque perdeu, por um lado, o
sentido da seriedade e, por outro, o do riso. Porque rompeu com a seriedade, com a
eficácia imediata e perniciosa - em suma, com o Perigo.
Porque perdeu, por outro lado, o sentido do humor verdadeiro e do poder de
dissociação física e anárquica do riso.
Porque rompeu com o espírito de anarquia profunda que está na base de toda
poesia.
É preciso admitir que tudo na destinação de um objeto, no sentido ou na
utilização de uma forma natural, tudo é questão de convenção.
Quando a natureza deu a uma árvore a forma de árvore, podia muito bem lhe ter
dado a forma de um animal ou de uma colina, teríamos pensado árvore ao ver um
animal ou uma colina, e pronto.
Entende-se que uma mulher bonita tem uma voz harmoniosa; se desde que o
mundo é mundo tivéssemos ouvido todas as mulheres lindas nos chamarem com toques
de trompa e nos cumprimentarem com barridos, por toda a eternidade teríamos
associado a idéia do barrido com a idéia de mulher bonita, e com isso parte de nossa
visão interior do mundo teria sido radicalmente transformada.
Compreende-se assim que a poesia é anárquica na medida em que põe em
questão todas as relações entre os objetos e entre as formas e suas significações. É
anárquica também na medida em que seu aparecimento é a conseqüência de uma
desordem que nos aproxima do caos.
Não darei outros exemplos disso. Poderíamos multiplicá-los ao infinito, e não
apenas com exemplos humorísticos como os que acabo de utilizar.
Teatralmente, essas inversões de forma, esses deslocamentos de significações
poderiam tornar-se o elemento essencial dessa poesia humorística e no espaço que é
exclusivamente da encenação.
Num filme dos Irmãos Marx, um homem, que acredita estar abraçando uma
mulher, abraça uma vaca, que dá um mugido. E, por um concurso de circunstâncias em
que seria muito longo insistir, esse mugido, naquele momento, assume uma dignidade
intelectual igual à de qualquer grito de mulher.
Uma situação como essa, possível no cinema, não é menos possível no teatro:
bastaria pouca coisa, como por exemplo, substituir a vaca por um boneco animado, uma
espécie de monstro dotado de fala, ou por um ser humano disfarçado de animal, e com
isso se reencontraria o segredo de uma poesia objetiva com base no humor e à qual o
teatro renunciou, que ele abandonou pelo musichall e que depois o cinema aproveitou.
Há pouco falei em perigo. Ora, o que me parece melhor realizar em cena essa
idéia de perigo é o imprevisto objetivo, o imprevisto não nas situações, mas nas coisas,
a passagem intempestiva, brusca, de uma imagem pensada para uma imagem
verdadeira; por exemplo, um homem que blasfema vê materializar-se bruscamente à sua
frente, com traços reais, a imagem de sua blasfêmia (mas com a condição, acrescento,
de que essa imagem não seja inteiramente gratuita, de que ela provoque o aparecimento,
por sua vez, de outras imagens da mesma veia espiritual, etc.)
Outro exemplo seria o aparecimento de um Ser inventado, feito de pano e de
madeira, inteiramente artificiai, não correspondendo a nada, e no entanto inquietante por
natureza, capaz de reintroduzir em cena um pequeno sopro do grande medo metafísico
que é a base de todo o teatro antigo.
Os balineses, com seu dragão inventado, como todos os orientais, não perderam
o sentido desse medo misterioso que sabem ser um dos elementos mais atuantes (e,
aliás, essencial) do teatro, quando colocado em seu verdadeiro plano.
É que a verdadeira poesia, quer queiramos ou não, é metafísica, e é seu próprio
alcance metafísico, eu diria, seu grau de eficácia metafísica, que constitui todo o seu
verdadeiro valor.
Essa é a segunda ou terceira vez que falo aqui em metafísica. Ainda há pouco, a
respeito da psicologia, eu falava de idéias mortas e sinto que muitos se veriam tentados
a dizer-me que, se existe no mundo uma idéia inumana, uma idéia ineficaz e morta e
que pouco diz, mesmo ao espírito, essa idéia é exatamente a da metafísica.
Isso está ligado, como diz René Guénon, "a nosso modo puramente ocidental, a
nosso modo antipoético e truncado de considerar os princípios (fora do estado espiritual
enérgico e maciço que lhes corresponde)".
No teatro oriental de tendências metafísicas, oposto ao teatro ocidental de
tendências psicológicas, todo esse amontoado compacto de gestos, signos, atitudes,
sons, que constitui a linguagem da realização e da cena, essa linguagem que desenvolve
todas as suas conseqüências físicas e poéticas em todos os planos da consciência e em
todos os sentidos, leva necessariamente o pensamento a assumir atitudes profundas que
são o que poderíamos chamar de metafísica em atividade.
Logo retomarei esse ponto. No momento, voltemos ao teatro conhecido.
Há alguns dias, eu assistia a uma discussão sobre o teatro. Vi uma espécie de
homens-serpentes, também chamados de autores dramáticos, explicar-me o modo de
insinuar uma peça a um diretor, como as pessoas da história que insulavam veneno no
ouvido de seus rivais. Tratava-se, creio, de determinar a orientação futura do teatro e,
em outras palavras, seu destino.
Não se determinou coisa alguma e em momento algum se falou do verdadeiro
destino do teatro, isto é, daquilo que, por definição e por essência, o teatro está
destinado a representar, nem dos meios de que ele dispõe para isso. Em compensação, o
teatro me foi apresentado como uma espécie de mundo gelado, com artistas encerrados
em gestos que doravante já não lhes servirão para nada, com entonações sólidas já
caindo aos pedaços, com músicas reduzidas a uma espécie de enumeração cifrada cujos
signos começam a se apagar, com uma espécie de lampejos luminosos, como que
solidificados, que correspondem a esboços de movimentos - e em torno de tudo isso um
borboletear de homens vestidos de preto que disputam em torno do braseiro os ferros
incandescentes para marcar sua posse. Como se a máquina teatral estivesse doravante
reduzida àquilo que a cerca. E é por estar reduzida ao que a cerca e por estar o teatro
reduzido a tudo o que não é mais teatro que essa atmosfera fede para as narinas de
pessoas de bom gosto.
Para mim, o teatro se confunde com suas possibilidades de realização quando
delas se extraem as conseqüências poéticas extremas, e as possibilidades de realização
do teatro pertencem totalmente ao domínio da encenação, considerada como uma
linguagem no espaço e em movimento.
Ora, extrair as conseqüências poéticas extremas dos meios de realização é fazer
a metafísica desses meios, e creio que ninguém se oporá a este modo de considerar a
questão.
E fazer a metafísica da linguagem, dos gestos, das atitudes, do cenário, da
música sob o ponto de vista teatral é, ao que me parece, considerá-los com relação a
todas as formas que eles podem ter de se encontrar com o tempo e com o movimento.
Dar exemplos objetivos dessa poesia consecutiva às diversas formas que podem
ter um gesto, uma sonoridade, uma entonação ao se apoiar com maior ou menor
insistência nesta ou naquela parte do espaço, neste ou naquele momento, parece-me tão
difícil quanto comunicar com palavras o sentimento da qualidade particular de um som
ou do grau e da qualidade de uma dor física. Isso depende da realização e só pode ser
determinado em cena.
Eu deveria agora passar em revista todos os meios de expressão que o teatro (ou
a encenação que, no sistema que acabo de expor, confunde-se com ele) contém. Isso me
levaria longe demais; ficarei apenas com um ou dois exemplos.
Primeiro, a linguagem articulada.
Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva
para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo,
excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividila
e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta
absoluta e devolver-lhes o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma
coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, poderse-ia
dizer alimentares, contra suas origens de animal acuado, é, enfim, considerar a
linguagem sob a forma do Encantamento.
Tudo neste modo poético e ativo de considerar a expressão em cena nos leva a
nos afastarmos da acepção humana, atual e psicológica do teatro para reencontrar sua
acepção religiosa e mística, cujo sentido nosso teatro perdeu completamente.
Aliás, o fato de bastar alguém pronunciar as palavras religioso ou místico para
ser confundido com um sacristão ou um bonzo profundamente iletrado e alienado de um
templo budista, que serve no máximo para girar as matracas das preces, mostra nossa
incapacidade de extrair de uma palavra todas as suas conseqüências e nossa profunda
ignorância do espírito de síntese e de analogia.
Isso talvez signifique que no ponto em que estamos perdemos qualquer contato
com o verdadeiro teatro, já que o limitamos ao domínio do que o pensamento cotidiano
pode alcançar, ao domínio conhecido ou desconhecido da consciência. E se nos
dirigimos teatralmente ao inconsciente é apenas para lhe arrancar o que ele conseguiu
recolher (ou ocultar) da experiência acessível e cotidiana.
Por outro lado, o fato de se afirmar que uma das razões da eficácia física sobre o
espírito, da força de atuação direta e representada em imagens de certas realizações do
teatro oriental como as do Teatro de Bali é que esse teatro apóia-se em tradições
milenares, que ele conservou intactos os segredos de utilização dos gestos, das
entonações, da harmonia, em relação aos sentidos e em todos os planos possíveis - isso
não condena o teatro oriental, mas condena a nós e, conosco, este estado de coisas em
que vivemos e que deve ser destruído, destruído com aplicação e maldade, em todos os
planos e em todos os níveis em que ele atrapalha o livre exercício do pensamento.


Antonin Artaud 'O Teatro e seu Duplo'