A ENCENAÇÃO E A METAFÍSICA


No Louvre há uma pintura de um primitivo, conhecido ou desconhecido, não sei,
mas cujo nome nunca será representativo de um período importante da história da arte.
Esse primitivo chama-se Lucas van den Leyden e a meu ver ele torna inúteis e
abortados os quatrocentos ou quinhentos anos de pintura que vieram depois dele. A tela
de que estou falando intitula-se As filhas de Loth, tema bíblico em moda na época. Claro
que, na Idade Média, a Bíblia não era entendida como a entendemos hoje, e este quadro
é um exemplo estranho das deduções místicas que podem ser extraídas dela. Em todo
caso, seu patético é visível mesmo de longe, impressiona o espírito com uma espécie de
harmonia visual fulminante, ou seja, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único
olhar. Mesmo antes de poder ver do que se trata, sente-se que ali está acontecendo algo
grandioso, e os ouvidos, por assim dizer, emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos.
Um drama de alta importância intelectual, ao que parece, é captado como uma brusca
reunião de nuvens que o vento, ou uma fatalidade muito mais direta, tivesse levado a
colocar seus relâmpagos em confronto.
Com efeito, o céu do quadro é escuro e carregado, mas mesmo antes de
conseguir distinguir que o drama nasceu no céu, se passa no céu, a particular iluminação
da tela, o emaranhado das formas, a impressão que se tem de longe, tudo isso anuncia
uma espécie de drama da natureza, cujo equivalente eu desafio qualquer pintor dos
Períodos Áureos da pintura a nos propor.
Uma tenda ergue-se à beira-mar, diante da qual Loth, sentado com sua couraça e
uma barba do mais lindo vermelho, observa a evolução de suas filhas, como se
assistisse a um festim de prostitutas.
E, de fato, elas se exibem, umas como mães de família, outras como guerreiras,
penteiam os cabelos e se paramentam, como se nunca tivessem tido outro objetivo além
de agradar ao pai, servir-lhe de brinquedo ou instrumento. Surge assim o caráter
profundamente incestuoso do velho tema que o pintor desenvolve aqui em imagens
apaixonadas. Prova de que ele compreendeu perfeitamente como um homem moderno,
ou seja, assim como nós poderíamos compreendê-la, a profunda sexualidade do tema.
Prova de que seu caráter de sexualidade profunda, mas poética não lhe escapou, como
não nos escapa.
À esquerda da tela, e um pouco em segundo plano, eleva-se a alturas prodigiosas
uma torre preta, apoiada na base por todo um sistema de rochedos, plantas, caminhos
sinuosos delimitados por marcos, pontilhados por casas aqui e ali. E, por um feliz efeito
de perspectiva, um desses caminhos de repente se destaca do emaranhado através do
qual se infiltrava, atravessa uma ponte, para finalmente receber um raio dessa luz de
tempestade que transborda das nuvens, aspergindo toda a região de modo irregular. O
mar ao fundo da tela é extremamente alto e, além disso, extremamente calmo,
considerando-se o emaranhado de fogo que fervilha num canto do céu.
De repente, no crepitar de fogos de artifício, através do bombardeio noturno das
estrelas, dos raios, das bombas solares, vemos de repente revelar-se a nossos olhos,
numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, alguns detalhes da paisagem: árvores,
torre, montanhas, casas, cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sempre
ligadas em nosso espírito à idéia desse dilaceramento sonoro; não é possível exprimir
melhor esta submissão dos diversos aspectos da paisagem ao fogo manifestado no céu
do que dizendo que, embora tenham luz própria, permanecem relacionados ao fogo
como espécies de ecos amortecidos, como pontos de referência vivos, nascidos do fogo
e ali colocados para permitir que ele exerça toda a sua força de destruição.
Existe, aliás, no modo pelo qual o pintor descreve esse fogo alguma coisa de
terrivelmente enérgico e perturbador, como um elemento ainda em ação e móvel numa
expressão imobilizada. Pouco importa o meio pelo qual esse efeito é alcançado, ele é
real; basta ver o quadro para convencer-se disso.
Seja como for, esse fogo, que emana uma impressão de inteligência e de
maldade que ninguém poderia negar, serve, por sua própria violência, de contrapeso no
espírito para a estabilidade material e densa do resto.
Entre o mar e o céu, mas à direita e no mesmo plano em perspectiva da Torre
Negra, avança uma delgada língua de terra coroada por um mosteiro em ruínas.
Essa língua de terra, por mais próxima que pareça da margem em que se ergue a
tenda de Loth, abre espaço para um golfo imenso no qual parece ter havido um desastre
marítimo sem precedentes. Barcos cortados ao meio e que não chegam a afundar
apóiam-se no mar como em muletas, enquanto ao lado flutuam seus mastros arrancados
e suas vergas.
Seria difícil dizer por que é tão total a impressão de desastre que provém da
observação de apenas um ou dois navios despedaçados.
Parece que o pintor conhecia alguns segredos relativos à harmonia linear e os
meios de fazê-la atuar diretamente sobre o cérebro, como um reagente físico. Em todo
caso, essa impressão de inteligência espalhada pela natureza exterior, e sobretudo no
modo de representá-la, é visível em vários outros detalhes do quadro, como testemunha
a ponte da altura de uma casa de oito andares que se ergue sobre o mar e onde
personagens em fila desfilam como as Idéias na caverna de Platão.
Pretender que são claras as idéias que se depreendem desse quadro seria falso.
Em todo caso, são de uma grandeza da qual a pintura que só sabe pintar, ou seja, toda a
pintura de vários séculos, nos desacostumou completamente.
Acessoriamente, ao lado de Loth e de suas filhas, há uma idéia sobre a
sexualidade e a reprodução, com Loth que parece ter sido colocado ali para aproveitarse
abusivamente de suas filhas, como um zangão.
É quase a única idéia social que a pintura contém.
Todas as outras são idéias metafísicas. Lamento pronunciar essa palavra, mas é o
nome delas; e eu diria até que sua grandeza poética, sua eficácia concreta sobre nós,
provém do fato de serem metafísicas, e que sua profundidade espiritual é inseparável da
harmonia formal e exterior do quadro.
Há ainda uma idéia sobre o Devir que os diversos detalhes da paisagem e o
modo pelo qual foram pintados, pelo qual seus planos se aniquilam ou se correspondem,
introduzem-nos no espírito tal como a música o faria.
Há uma outra idéia sobre a Fatalidade, expressa menos pelo aparecimento desse
fogo brusco do que pelo modo solene como todas as formas se organizam ou se
desorganizam abaixo dele, umas como que curvadas pelo vento de um pânico
irresistível, outras imóveis e quase irônicas, todas obedecendo a uma harmonia
intelectual poderosa, que parece o próprio espírito da natureza, exteriorizado.
Há também uma idéia sobre o Caos, outra sobre o Maravilhoso, sobre o
Equilíbrio; há até uma ou duas sobre as impotências da Palavra, cuja inutilidade essa
pintura extremamente material e anárquica parece nos demonstrar.
Em todo caso, digo que essa pintura é o que o teatro deveria ser, se soubesse
falar a linguagem que lhe pertence.
E faço uma pergunta:
Como é que no teatro, pelo menos no teatro tal como o conhecemos na Europa,
ou melhor, no Ocidente, tudo o que é especificamente teatral, isto é, tudo o que não
obedece à expressão através do discurso, das palavras ou, se preferirmos, tudo que não
está contido no diálogo (o próprio diálogo considerado em função de suas
possibilidades de sonorização na cena, e das exigências dessa sonorização) seja deixado
em segundo plano?
Como é que o teatro ocidental (digo ocidental porque felizmente há outros, como
o teatro oriental, que souberam conservar intacta a idéia de teatro, ao passo que no
Ocidente esta idéia - como todo o resto - se prostituiu), como é que o teatro ocidental
não enxerga o teatro sob um outro aspecto que não o do teatro dialogado?
O diálogo - coisa escrita e falada - não pertence especificamente à cena, pertence
ao livro; a prova é que nos manuais de história literária reserva-se um lugar para o teatro
considerado como ramo acessório da história da linguagem articulada.
Digo que a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que
se faça com que ela fale sua linguagem concreta.
Digo que essa linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da
palavra, deve satisfazer antes de tudo aos sentidos, que há uma poesia para os sentidos
assim como há uma poesia para a linguagem e que a linguagem física e concreta à qual
me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que expressa
escapam à linguagem articulada.
Perguntar-me-ão que pensamentos são esses que a palavra não pode expressar e
que, muito melhor do que através da palavra, encontrariam sua expressão ideal na
linguagem concreta e física do palco.
Responderei a esta pergunta um pouco mais tarde. Mais urgente me parece
determinar em que consiste essa linguagem física, essa linguagem material e sólida
através da qual o teatro pode se distinguir da palavra.
Ela consiste em tudo o que ocupa a cena, em tudo aquilo que pode se manifestar
e exprimir materialmente numa cena, e que se dirige antes de mais nada aos sentidos em
vez de se dirigir em primeiro lugar ao espírito, como a linguagem da palavra. (Sei muito
bem que também as palavras têm possibilidades de sonorização, modos diversos de se
projetarem no espaço, que chamamos de entonações. E, aliás, haveria muito a dizer
sobre o valor concreto da entonação no teatro, sobre a faculdade que têm as palavras de
criar, também elas, uma música segundo o modo como são pronunciadas,
independentemente de seu sentido concreto, e que pode até ir contra esse sentido - de
criar sob a linguagem uma corrente subterrânea de impressões, de correspondências, de
analogias; mas esse modo teatral de considerar a linguagem já é um aspecto da
linguagem acessória para o autor dramático, que ele já não leva em conta, sobretudo
atualmente, ao estabelecer suas peças. Portanto, deixemos isso de lado).
Essa linguagem feita para os sentidos deve antes de mais nada tratar de satisfazêlos.
Isso não a impede de, em seguida, desenvolver todas as suas conseqüências
intelectuais em todos os planos possíveis e em todas as direções. E isso permite a
substituição da poesia da linguagem por uma poesia no espaço que se resolverá
exatamente no domínio do que não pertence estritamente às palavras.
Sem dúvida seria bom que tivéssemos, para melhor compreender o que quero
dizer, alguns exemplos dessa poesia no espaço, capaz de criar como que imagens
materiais equivalentes às imagens das palavras. Esses exemplos serão vistos mais
adiante.
Essa poesia muito difícil e complexa reveste-se de múltiplos aspectos: em
primeiro lugar, os de todos os meios de expressão utilizáveis em cena2, como música,
2 Na medida em que se revelam capazes de aproveitar as possibilidades físicas imediatas que a cena lhes oferece para
substituir as formas imobilizadas da arte por formas vivas e ameaçadoras, através das quais o sentido da velha magia
dança, artes plásticas, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura,
iluminação e cenário.
Cada um desses meios tem uma poesia própria, intrínseca, e depois uma espécie
de poesia irônica que provém do modo como ele se combina com os outros meios de
expressão; e é fácil perceber as conseqüências dessas combinações, de suas reações e de
suas destruições recíprocas.
Mais adiante voltarei a essa poesia, que só poderá ser totalmente eficaz se for
concreta, isto é, se produzir objetivamente alguma coisa através de sua presença ativa
em cena - se um som como no Teatro de Bali equivale a um gesto, e em vez de servir de
cenário, de acompanhamento de um pensamento, faz com que ele evolua, o dirige, o
destrói ou o transforma definitivamente, etc.
Uma forma dessa poesia no espaço - além daquela que pode ser criada com
combinações de linhas, formas, cores, objetos em estado bruto, como acontece em todas
as artes - pertence à linguagem através dos signos. E me deixarão falar um instante,
espero, deste outro aspecto da linguagem teatral pura, que escapa à palavra, da
linguagem por signos, gestos e atitudes que têm um valor ideográfico tal como existem
ainda em certas pantomimas não pervertidas.
Por "pantomima não pervertida" entendo a pantomima direta em que os gestos,
em vez de representarem palavras, corpos de frases, como em nossa pantomima
européia, que tem apenas cinqüenta anos, e que não passa de mera deformação das
partes mudas da comédia italiana, representam idéias, atitudes do espírito, aspectos da
natureza, e isso de um modo efetivo, concreto, isto é, evocando sempre objetos ou
detalhes naturais, como a linguagem oriental que representa a noite através de uma
árvore na qual um pássaro que já fechou um olho começa a fechar o outro. E uma outra
idéia abstrata ou atitude de espírito poderia ser representada por alguns dos inúmeros
símbolos das Escrituras; exemplo: o buraco da agulha pelo qual o camelo é incapaz de
passar.
Vê-se que esses signos constituem verdadeiros hieróglifos, em que o homem, na
medida em que contribui para formá-los, é apenas uma forma como outra qualquer, à
qual, em virtude de sua dupla natureza, ele acrescenta, no entanto um prestígio singular.
Essa linguagem que evoca ao espírito imagens de uma poesia natural (ou
espiritual) intensa dá bem a idéia do que poderia ser no teatro uma poesia no espaço
independente da linguagem articulada.
Seja o que for essa linguagem e sua poesia, observo que em nosso teatro, que
vive sob a ditadura exclusiva da palavra, essa linguagem de signos e de mímica, essa
pantomima silenciosa, essas atitudes, esses gestos no ar, essas entonações objetivas, em
suma, tudo o que considero como especificamente teatral no teatro, todos esses
elementos, quando existem fora do texto, constituem para todo o mundo a região baixa
do teatro, são chamados negligentemente de "arte", e confundem-se com aquilo que se
entende por encenação ou "realização"; e ainda é sorte quando não se atribui à palavra
encenação a idéia de uma suntuosidade artística e exterior, que pertence exclusivamente
às roupas, à iluminação e ao cenário.
E em oposição a esse modo de ver, modo que me parece bem ocidental, ou antes
latino, isto é, obstinado, diria que na medida em que essa linguagem parte da cena, onde
extrai sua eficácia de sua criação espontânea em cena, na medida em que se defronta
diretamente com a cena sem passar pelas palavras (e por que não imaginar uma peça
composta diretamente em cena, realizada em cena?), o teatro é a encenação, muito mais
cerimonial pode reencontrar, no plano do teatro, uma nova realidade; na medida em que cedem àquilo que se poderia
chamar de tentação física da cena.
do que a peça escrita e falada. Pedir-me-ão, sem dúvida, que explique o que há de latino
nesta visão oposta à minha. O que existe de latino é esta necessidade de utilizar as
palavras para expressar idéias que sejam claras. Para mim, no teatro como em toda
parte, idéias claras são idéias mortas e acabadas.
A idéia de uma peça feita diretamente em cena, esbarrando nos obstáculos da
realização e da cena, impõe a descoberta de uma linguagem ativa, ativa e anárquica, em
que sejam abandonadas as delimitações habituais entre os sentimentos e as palavras.
Em todo caso, e apresso-me em dizê-lo desde já, um teatro que submete ao texto
a encenação e a realização, isto é, tudo o que é especificamente teatral, é um teatro de
idiota, louco, invertido, gramático, merceeiro, antipoeta e positivista, isto é, um teatro
de ocidental.
Sei muito bem, por outro lado, que a linguagem dos gestos e das atitudes, que a
dança, a música são menos capazes de elucidar um caráter, de relatar os pensamentos
humanos de uma personagem, de expor os estados da consciência claros e precisos do
que a linguagem verbal, mas quem disse que o teatro é feito para elucidar um caráter,
para resolver conflitos de ordem humana e passional, de ordem atual e psicológica,
coisas de que nosso teatro contemporâneo está repleto?
Sendo o teatro tal como o vemos aqui, dir-se-ia que a única coisa que importa na
vida é saber se vamos trepar direito, se faremos a guerra ou se seremos suficientemente
covardes para fazer a paz, como nos arranjamos com nossas pequenas angústias morais
e se tomaremos consciência de nossos "complexos" (isto dito em linguagem erudita) ou
se nossos "complexos" acabarão por nos sufocar. É raro, aliás, que o debate se eleve ao
plano social e que se critique nosso sistema social e moral. Nosso teatro nunca chega ao
ponto de perguntar se por acaso esse sistema social e moral não seria iníquo.
Digo que o estado social atual é iníquo e deve ser destruído. E, se cabe ao teatro
preocupar-se com isso, cabe ainda mais à metralhadora. Nosso teatro nem é capaz de
colocar essa questão do modo ardoroso e eficaz que seria necessário, mas, mesmo que o
fizesse, estaria saindo de seu objeto, que para mim é algo superior e mais secreto.
Todas as preocupações enumeradas acima infestam o homem de um modo
inverossímil, o homem provisório e material, diria mesmo, o homem-carcaça. No que
me diz respeito, essas preocupações me repugnam, me repugnam no mais alto grau,
assim como quase todo o teatro contemporâneo, tão humano quanto é antipoético e que,
com exceção de três ou quatro peças, me parece ter o fedor da decadência e do pus.
O teatro contemporâneo está em decadência porque perdeu, por um lado, o
sentido da seriedade e, por outro, o do riso. Porque rompeu com a seriedade, com a
eficácia imediata e perniciosa - em suma, com o Perigo.
Porque perdeu, por outro lado, o sentido do humor verdadeiro e do poder de
dissociação física e anárquica do riso.
Porque rompeu com o espírito de anarquia profunda que está na base de toda
poesia.
É preciso admitir que tudo na destinação de um objeto, no sentido ou na
utilização de uma forma natural, tudo é questão de convenção.
Quando a natureza deu a uma árvore a forma de árvore, podia muito bem lhe ter
dado a forma de um animal ou de uma colina, teríamos pensado árvore ao ver um
animal ou uma colina, e pronto.
Entende-se que uma mulher bonita tem uma voz harmoniosa; se desde que o
mundo é mundo tivéssemos ouvido todas as mulheres lindas nos chamarem com toques
de trompa e nos cumprimentarem com barridos, por toda a eternidade teríamos
associado a idéia do barrido com a idéia de mulher bonita, e com isso parte de nossa
visão interior do mundo teria sido radicalmente transformada.
Compreende-se assim que a poesia é anárquica na medida em que põe em
questão todas as relações entre os objetos e entre as formas e suas significações. É
anárquica também na medida em que seu aparecimento é a conseqüência de uma
desordem que nos aproxima do caos.
Não darei outros exemplos disso. Poderíamos multiplicá-los ao infinito, e não
apenas com exemplos humorísticos como os que acabo de utilizar.
Teatralmente, essas inversões de forma, esses deslocamentos de significações
poderiam tornar-se o elemento essencial dessa poesia humorística e no espaço que é
exclusivamente da encenação.
Num filme dos Irmãos Marx, um homem, que acredita estar abraçando uma
mulher, abraça uma vaca, que dá um mugido. E, por um concurso de circunstâncias em
que seria muito longo insistir, esse mugido, naquele momento, assume uma dignidade
intelectual igual à de qualquer grito de mulher.
Uma situação como essa, possível no cinema, não é menos possível no teatro:
bastaria pouca coisa, como por exemplo, substituir a vaca por um boneco animado, uma
espécie de monstro dotado de fala, ou por um ser humano disfarçado de animal, e com
isso se reencontraria o segredo de uma poesia objetiva com base no humor e à qual o
teatro renunciou, que ele abandonou pelo musichall e que depois o cinema aproveitou.
Há pouco falei em perigo. Ora, o que me parece melhor realizar em cena essa
idéia de perigo é o imprevisto objetivo, o imprevisto não nas situações, mas nas coisas,
a passagem intempestiva, brusca, de uma imagem pensada para uma imagem
verdadeira; por exemplo, um homem que blasfema vê materializar-se bruscamente à sua
frente, com traços reais, a imagem de sua blasfêmia (mas com a condição, acrescento,
de que essa imagem não seja inteiramente gratuita, de que ela provoque o aparecimento,
por sua vez, de outras imagens da mesma veia espiritual, etc.)
Outro exemplo seria o aparecimento de um Ser inventado, feito de pano e de
madeira, inteiramente artificiai, não correspondendo a nada, e no entanto inquietante por
natureza, capaz de reintroduzir em cena um pequeno sopro do grande medo metafísico
que é a base de todo o teatro antigo.
Os balineses, com seu dragão inventado, como todos os orientais, não perderam
o sentido desse medo misterioso que sabem ser um dos elementos mais atuantes (e,
aliás, essencial) do teatro, quando colocado em seu verdadeiro plano.
É que a verdadeira poesia, quer queiramos ou não, é metafísica, e é seu próprio
alcance metafísico, eu diria, seu grau de eficácia metafísica, que constitui todo o seu
verdadeiro valor.
Essa é a segunda ou terceira vez que falo aqui em metafísica. Ainda há pouco, a
respeito da psicologia, eu falava de idéias mortas e sinto que muitos se veriam tentados
a dizer-me que, se existe no mundo uma idéia inumana, uma idéia ineficaz e morta e
que pouco diz, mesmo ao espírito, essa idéia é exatamente a da metafísica.
Isso está ligado, como diz René Guénon, "a nosso modo puramente ocidental, a
nosso modo antipoético e truncado de considerar os princípios (fora do estado espiritual
enérgico e maciço que lhes corresponde)".
No teatro oriental de tendências metafísicas, oposto ao teatro ocidental de
tendências psicológicas, todo esse amontoado compacto de gestos, signos, atitudes,
sons, que constitui a linguagem da realização e da cena, essa linguagem que desenvolve
todas as suas conseqüências físicas e poéticas em todos os planos da consciência e em
todos os sentidos, leva necessariamente o pensamento a assumir atitudes profundas que
são o que poderíamos chamar de metafísica em atividade.
Logo retomarei esse ponto. No momento, voltemos ao teatro conhecido.
Há alguns dias, eu assistia a uma discussão sobre o teatro. Vi uma espécie de
homens-serpentes, também chamados de autores dramáticos, explicar-me o modo de
insinuar uma peça a um diretor, como as pessoas da história que insulavam veneno no
ouvido de seus rivais. Tratava-se, creio, de determinar a orientação futura do teatro e,
em outras palavras, seu destino.
Não se determinou coisa alguma e em momento algum se falou do verdadeiro
destino do teatro, isto é, daquilo que, por definição e por essência, o teatro está
destinado a representar, nem dos meios de que ele dispõe para isso. Em compensação, o
teatro me foi apresentado como uma espécie de mundo gelado, com artistas encerrados
em gestos que doravante já não lhes servirão para nada, com entonações sólidas já
caindo aos pedaços, com músicas reduzidas a uma espécie de enumeração cifrada cujos
signos começam a se apagar, com uma espécie de lampejos luminosos, como que
solidificados, que correspondem a esboços de movimentos - e em torno de tudo isso um
borboletear de homens vestidos de preto que disputam em torno do braseiro os ferros
incandescentes para marcar sua posse. Como se a máquina teatral estivesse doravante
reduzida àquilo que a cerca. E é por estar reduzida ao que a cerca e por estar o teatro
reduzido a tudo o que não é mais teatro que essa atmosfera fede para as narinas de
pessoas de bom gosto.
Para mim, o teatro se confunde com suas possibilidades de realização quando
delas se extraem as conseqüências poéticas extremas, e as possibilidades de realização
do teatro pertencem totalmente ao domínio da encenação, considerada como uma
linguagem no espaço e em movimento.
Ora, extrair as conseqüências poéticas extremas dos meios de realização é fazer
a metafísica desses meios, e creio que ninguém se oporá a este modo de considerar a
questão.
E fazer a metafísica da linguagem, dos gestos, das atitudes, do cenário, da
música sob o ponto de vista teatral é, ao que me parece, considerá-los com relação a
todas as formas que eles podem ter de se encontrar com o tempo e com o movimento.
Dar exemplos objetivos dessa poesia consecutiva às diversas formas que podem
ter um gesto, uma sonoridade, uma entonação ao se apoiar com maior ou menor
insistência nesta ou naquela parte do espaço, neste ou naquele momento, parece-me tão
difícil quanto comunicar com palavras o sentimento da qualidade particular de um som
ou do grau e da qualidade de uma dor física. Isso depende da realização e só pode ser
determinado em cena.
Eu deveria agora passar em revista todos os meios de expressão que o teatro (ou
a encenação que, no sistema que acabo de expor, confunde-se com ele) contém. Isso me
levaria longe demais; ficarei apenas com um ou dois exemplos.
Primeiro, a linguagem articulada.
Fazer a metafísica da linguagem articulada é fazer com que a linguagem sirva
para expressar aquilo que habitualmente ela não expressa: é usá-la de um modo novo,
excepcional e incomum, é devolver-lhe suas possibilidades de comoção física, é dividila
e distribuí-la ativamente no espaço, é tomar as entonações de uma maneira concreta
absoluta e devolver-lhes o poder que teriam de dilacerar e manifestar realmente alguma
coisa, é voltar-se contra a linguagem e suas fontes rasteiramente utilitárias, poderse-ia
dizer alimentares, contra suas origens de animal acuado, é, enfim, considerar a
linguagem sob a forma do Encantamento.
Tudo neste modo poético e ativo de considerar a expressão em cena nos leva a
nos afastarmos da acepção humana, atual e psicológica do teatro para reencontrar sua
acepção religiosa e mística, cujo sentido nosso teatro perdeu completamente.
Aliás, o fato de bastar alguém pronunciar as palavras religioso ou místico para
ser confundido com um sacristão ou um bonzo profundamente iletrado e alienado de um
templo budista, que serve no máximo para girar as matracas das preces, mostra nossa
incapacidade de extrair de uma palavra todas as suas conseqüências e nossa profunda
ignorância do espírito de síntese e de analogia.
Isso talvez signifique que no ponto em que estamos perdemos qualquer contato
com o verdadeiro teatro, já que o limitamos ao domínio do que o pensamento cotidiano
pode alcançar, ao domínio conhecido ou desconhecido da consciência. E se nos
dirigimos teatralmente ao inconsciente é apenas para lhe arrancar o que ele conseguiu
recolher (ou ocultar) da experiência acessível e cotidiana.
Por outro lado, o fato de se afirmar que uma das razões da eficácia física sobre o
espírito, da força de atuação direta e representada em imagens de certas realizações do
teatro oriental como as do Teatro de Bali é que esse teatro apóia-se em tradições
milenares, que ele conservou intactos os segredos de utilização dos gestos, das
entonações, da harmonia, em relação aos sentidos e em todos os planos possíveis - isso
não condena o teatro oriental, mas condena a nós e, conosco, este estado de coisas em
que vivemos e que deve ser destruído, destruído com aplicação e maldade, em todos os
planos e em todos os níveis em que ele atrapalha o livre exercício do pensamento.


Antonin Artaud 'O Teatro e seu Duplo'

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