Irmãos Marx



O primeiro filme dos Irmãos Marx que vimos aqui, Animal Crackers, pareceu me,
e assim foi visto por todo o mundo, uma coisa extraordinária, a liberação, através
da tela, de uma magia particular que as relações habituais entre as palavras e as imagens
não revelam, e, se há um estado caracterizado, um grau poético distinto do espírito que
se possa chamar de surrealismo, Animal Crackers participa plenamente dele.
É difícil dizer em que consiste essa espécie de magia, em todo caso é algo que
talvez não seja especificamente cinematográfico, mas que também não pertence ao
teatro, e de que apenas alguns poemas surrealistas bem sucedidos, se os houver,
poderiam dar uma idéia. A qualidade poética de um filme como Animal Crackers
poderia corresponder à definição do humor, se esta palavra há muito tempo não tivesse
perdido seu sentido de liberação integral, de dilaceramento de toda realidade no espírito.
Para compreender a originalidade poderosa, total, definitiva, absoluta (não estou
exagerando, simplesmente tento definir as coisas, e tanto pior se o entusiasmo me
arrebata) de um filme como Animal Crackers e, em alguns momentos (em todo caso,
em toda a parte final), como Monkey Business, seria preciso acrescentar ao humor a
noção de algo inquietante e trágico, uma fatalidade (nem feliz nem infeliz, mas difícil de
formular) que se esgueiraria por trás dele como a revelação de uma doença atroz num
perfil de absoluta beleza.
Em Monkey Business reencontramos os Irmãos Marx, cada um com seu tipo,
seguros de si e preparados, sente-se, para agarrar as circunstâncias pelo colarinho. Mas,
enquanto em Animal Crackers', e desde o começo, cada personagem quebrava a cara,
aqui se assiste, durante três quartas partes do filme, ao jogo de palhaços que se divertem
e fazem graça, algumas muito boas, e é apenas no fim que as coisas encorpam, que os
objetos, os animais, os sons, o patrão e seus empregados, o anfitrião e seus convidados,
que tudo isso se exaspera, se precipita e se revoluciona, sob os comentários ao mesmo tempo extasiados e lúcidos de um dos Irmãos Marx, arrebatado pelo espírito que ele
conseguiu enfim desencadear e do qual parece ser um comentário estupefato e
passageiro. Nada é tão alucinante e terrível quanto essa espécie de caça ao homem,
como a luta entre rivais, a perseguição nas trevas de um estábulo, de um celeiro onde
por todo lado pendem teias de aranha, enquanto homens, mulheres e animais vêem-se
no meio de um amontoado de objetos heteróclitos cujo movimento ou ruído terão cada
um seu papel.
O fato de em Animal Crackers uma mulher de repente cair de pernas para cima,
num sofá, e mostrar por um instante tudo o que gostaríamos de ver, ou de um homem de
repente se jogar sobre uma mulher num salão, dar com ela alguns passos de dança e em
seguida estapeá-la dentro do ritmo, mostra uma espécie de liberdade intelectual em que
o inconsciente de cada personagem, comprimido pelas convenções e costumes, vinga-se
e ao mesmo tempo vinga nosso inconsciente; mas o fato de em Monkey Business um
homem acuado se jogar sobre uma linda mulher que encontra e dançar com ela,
poeticamente, numa espécie de busca do encanto e da graça das atitudes mostra uma
reivindicação espiritual dupla, e mostra tudo o que há de poético e talvez de
revolucionário na graça dos Irmãos Marx.
Mas o fato de a música dançada pelo casal do homem acuado e da linda mulher
ser uma música de nostalgia e evasão, uma música de alívio, uma música de liberação,
indica o lado perigoso de todas essas blagues humorísticas e mostra que o espírito
poético quando se exerce tende sempre a uma espécie de anarquia fervilhante, a uma
desagregação integral do real pela poesia.
Se os americanos, a cujo espírito pertence esse tipo de filme, só querem entender
esses filmes humoristicamente, e em matéria de humor sempre se mantêm apenas nas
margens fáceis e cômicas da significação dessa palavra, pior para eles, mas isso não nos
impedirá de considerar o fim de Monkey Business como um hino à anarquia e à revolta
integral, o fim que põe o berro de um bezerro no mesmo nível intelectual e lhe atribui a
mesma qualidade de dor lúcida que ao grito de uma mulher com medo, o fim em que
nas trevas de um celeiro sujo dois criados raptores trituram à vontade os ombros nus da
filha do patrão e tratam de igual para igual com o patrão desamparado, tudo isso em
meio à embriaguez, também intelectual, das piruetas dos Irmãos Marx. E o triunfo de
tudo isso está na espécie de exaltação ao mesmo tempo visual e sonora que todos esses
acontecimentos assumem nas trevas, no grau de vibrações que eles atingem e na espécie
de forte inquietação que sua reunião acaba por projetar no espírito.

Antonin Artaud  -O Teatro e Seu Duplo-

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