A oportunidade de rever a obra de Qorpo Santo

A oportunidade de rever a obra de Qorpo Santo


Na sala de espera, alguém me disse: estou curioso, porque nunca li nada do Qorpo Santo. Expliquei-lhe que existem edições das peças de Qorpo Santo que podem ser facilmente acessadas e compulsadas. Mas este diálogo dá clara tradução da importância da iniciativa do diretor Júlio Saraiva e de seu Ubando Grupo em encenar a comédia Hoje sou hum, amanhã outro, de José Joaquim de Campos Leão, autodenominado Qorpo Santo, internado como débil mental, desautorizado pela família, desdenhado e perseguido pelas autoridades, menosprezado e simplesmente desconhecido de seus contemporâneos, até um século depois. Ironia da história. Exatos cem anos depois de escritas, estas comédias e seu autor foram redescobertos, em episódio tão rocambolesco quanto o próprio dramaturgo, mas que valeu-lhe, ainda que tardio, reconhecimento. Mais: como bem observou, pouco depois, o crítico Yan Michalski, não escrevesse em português, teria sido uma consagração mundial. Deixemos essas coisas de lado, porém, e comentemos o texto e a encenação.

Com três atos originais (curtos atos, diga-se de passagem, pois curtíssima é a peça), aqui concentrados em um só, Hoje sou hum, amanhã outro está datada, pelo próprio autor, como escrita em 15 de maio de 1866. Trata-se de uma farsa, primeiro situada em Porto Alegre e, logo depois, no Rio de Janeiro (pela menção à Fortaleza da Lage). O rei encontra-se preocupado com prováveis maquinações que visariam derrubá-lo do poder: discute o tema com seu Ministro, quando este lhe revela que ele mesmo, Ministro, estava convencido de ser ele o rei, e o rei, o Ministro... Eis que então o reino é atacado por uma tropa inimiga. O rei lamenta que tenha de haver tão cruel carnificina, mas assume o comando de seus soldados e derrota os inimigos. O texto se encerra com um último comentário do rei, que se identifica como Qorpo Santo (no texto, apenas Q...s – o que Guilhermino César identifica corretamente como o próprio autor que costumava tornar-se alter ego, quer de um dramaturgo hipotético, quer de personagens da encenação).

O enredo é simples, mas definitivo: para que melhor se compreenda, lembro ao leitor (e possível espectador) que o contexto sócio-político-histórico é o da Guerra do Paraguai, iniciada em 1864 e concluída em 1870. Desnecessário se torna relembrar as incongruências daquela luta. Mas é talvez importante salientar que, justamente neste ano de 2014, comemoram-se 150 anos do início da disputa, que os paraguaios chamam, criticamente, de Guerra do Brasil.

Estamos, pois, diante de uma farsa que faz evidente crítica ao comportamento do Império de seu chefe, o Imperador, que terminou sendo o grande responsável pela matança e a destruição de toda uma população, arruinando a que era, então, a nação mais industrializada da América do Sul e a que evidenciava maior consciência de autonomia em face dos imperialistas da época, os ingleses. Tudo isso, reitero, justificaria e valorizaria a sensibilidade de Júlio Saraiva em realizar este espetáculo.

Disse-me ele que o projeto é ampliar os estudos e as montagens de Qorpo Santo, mas onde o financiamento? Saraiva não é dos diretores institucionalizados. Não gosta de fazer projetos e mendigar financiamentos. Mas eu diria que se as autoridades culturais (de Porto Alegre ou do Rio Grande do Sul) tiverem alguma preocupação verdadeira com a boa arte e a oportunidade, deveriam tomar a iniciativa de chamar o grupo e propor-lhe um trabalho, simplesmente pelos motivos aqui já elencados.

Mais que isso tudo, porém, vale o trabalho de criação. Trata-se de um coletivo. Criaram o cenário, decidiram a produção, buscaram as alternativas para colocar em pé um espetáculo simples, mas bem realizado. A iluminação de Vicente Goulart, a trilha sonora original de Guto Basso e as interpretações corretas e bem marcadas de Aline Ferraz, Edgar Alves e Renan Leandro (o rei) mostram que o grupo sabe o que quer e não veio para brincadeiras. A temporada começa bem. Felizmente.

ANTÔNIO HOHLFELDT

Coluna publicada em 21/03/14 no Jornal do Comércio
http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=157181

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