Peça contextualiza Qorpo-Santo como um homem de seu tempo


Rodolfo Ruscheinsky (E) e Áquila Mattos estão no elenco de "Santo Qorpo"
                                                                               Foto: Martino Piccinini / Divulgação
A peça Santo Qorpo ou O Louco da Província, que estreou na semana passada e está em cartaz até domingo (15/6) no Teatro Bruno Kiefer, em Porto Alegre, chega com a hipótese de que a obra do dramaturgo e poeta Qorpo-Santo (1829 – 1883) deve ser entendida como autobiográfica. É uma tese ousada porque vai na contramão das teorias literárias que pedem cuidado ao tentar explicar a obra pela biografia do autor. Mas há um bom argumento: Qorpo-Santo deixou, sim, textos autobiográficos, e suas peças veiculam uma certa visão de mundo que lhe era muito própria.

Por essas e outras, a maneira mais proveitosa de assistir ao trabalho dirigido por Inês Marocco é suspendendo a distinção entre realidade e ficção. Escrita por quatro integrantes do elenco (Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana), a dramaturgia tem como base o livro Cães da Província, de Luiz Antonio de Assis Brasil, que romanceia a vida do autor. O roteiro é acrescido de excertos da Ensiqlopédia, a obra em nove volumes de Qorpo-Santo, onde estão as peças e outros textos. 

A ação transcorre em ritmo acelerado, especialmente no início, aproximando-se do ritmo das peças de Qorpo-Santo. Sem dúvida, o momento mais divertido é a cena em que ele tenta convencer sua mulher de que Napoleão III está na sala de casa. No competente trabalho do roteiro, é de se lamentar apenas que a trama termine no meio da história, quando ele embarca para ser avaliado por um alienista no Rio de Janeiro.

Qorpo-Santo é caso raro de escritor brasileiro que não costuma ser estudado à luz dos movimentos artísticos nacionais. Em vez disso, é associado a tendências europeias anacrônicas a ele, como o teatro do absurdo e o surrealismo. Ambientado no século 19, o espetáculo parece entender o autor como um homem de seu tempo, embora polêmico – às vezes visionário, como na denúncia do uso de escravos pela sociedade; às vezes idealista, como na reforma gramatical que não vingou.

O elenco jovem do Santo Qoletivo denuncia certa inexperiência, mas a diretora soube extrair o melhor, pois a maioria dos atores faz justiça a seus papéis. Os quatro que representam Qorpo-Santo (são eles Áquila Mattos, Eduardo Schmidt, Jeferson Cabral e Rodolfo Ruscheinsky) ressaltam as multidões internas do personagem sem comprometer a unidade.

A cenografia econômica de Martino Piccinini, composta por algumas cadeiras e um balcão, dá sequência à estética da encenação praticada em espetáculos anteriores da diretora, aqui também pontuada por uma discreta trilha sonora, executada ao vivo pelos próprios atores (orientados por Adolfo Almeida Jr.). Os figurinos de Rô Cortinhas se destacam como elemento de época, um show à parte. E a iluminação de Fernando Ochôa salienta um efeito de chiaroscuro que lembra as pinturas de Caravaggio e Rembrandt. É a metáfora definitiva da vida de Qorpo-Santo: uma sequência de claros, como sua atividade tipográfica, e escuros dos quais nada se sabe, como anotou ainda em 1975 o pesquisador Flávio Aguiar.

por Fábio Prikladnicki

Extraído de: http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2014/06/opiniao-peca-contextualiza-qorpo-santo-como-um-homem-de-seu-tempo-4524947.html

Qorpo Vivo

Luís Augusto Fischer: Qorpo vivo

Colunista escreve sobre escritor Qorpo-Santo (1829 – 1883)

20/05/2014 | 07h01
Não passa um semestre, há mais de 20 anos, sem que eu leia algo que me leve de volta a Qorpo-Santo. Aí eu abro um arquivo no computador e anoto, para depois, quem sabe, escrever sobre. Já me prometi tentar escrever um estudo mais detido sobre sua figura, para tentar recontar documentalmente sua vida e obra, coisa que na ficção nosso atual secretário da Cultura, Luiz Antonio de Assis Brasil, já fez, no romance Cães da Província.
Para o leitor que está chegando agora, trata-se de um escritor gaúcho, José Joaquim de Campos Leão (1829 – 1883), que usava o curioso apelido em função de uma iluminação que dizia ter tido, segundo a qual ele devia manter o corpo santo, sem a conspurcação do sexo. Amalucado, vítima de crises mentais sem diagnóstico claro, foi interditado judicialmente, mas depois recuperou a autonomia civil e publicou tudo que tinha escrito ao longo da vida. A essa obra reunida deu o nome nada modesto de Ensiqlopédia – mais uma vez usando aquele "q" no lugar do convencional "c", marca de outra de suas ideias, uma reforma ortográfica igualmente maluca.
Agora mesmo voltei a ele, por ter manuseado livros e anotações deixadas pelo saudoso Aníbal Damasceno Ferreira, falecido ano passado, seu descobridor e entusiasta. Poucos dias atrás, a Laura Backes me convidou para conversar sobre ele, tendo em vista nova montagem de seu teatro.
E abri meu arquivo digital para retomar coisas, quando me deparei com anotações sobre um belo ensaio publicado na revista Serrote, 2, julho de 2009, da neurologista Alice W. Flaherty, chamado "Hipergrafia, o incurável mal da escrita". Ali são evocados casos de vários escritores enquadráveis no caso, entre os quais Dostoiévski e Flaubert, Poe e Lewis Carroll, aos quais nós podemos acrescentar não apenas nosso Qorpo-Santo, de obra tão estranha, mas Machado de Assis e Jorge Luis Borges, creio.
O Aníbal tinha uma imagem decerto aprendida com um amigo físico: Qorpo-Santo foi como um cometa; e um cometa, dizia, vale menos por si mesmo, em sua trajetória fugaz, e mais por permitir observações de contraste com outros corpos celestes que, sem o cometa, não apareceriam tão nitidamente

extraído de : .http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2014/05/luis-augusto-fischer-qorpo-vivo-4504112.html